sábado, 13 de fevereiro de 2016

O Último Judeu. Noah Gordon. «Os não-convertidos seriam obrigados a fugir por causa do decreto. E foi exactamente o que fizeram, todos menos Yonah Helkias Toledano. Ele vai trabalhar na terra como peão, num calabouço como servente, será pastor de ovelhas nas montanhas desertas da Andaluzia…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Em 1492, além da chegada de Colombo à América, conclui-se também a Reconquista, como se chamou a luta que os cristãos da Península Ibérica travaram contra os mouros do século XII ao final do século XV. É o ano da queda de Granada, último reduto muçulmano a sucumbir ante os reis católicos Fernando e Isabel. É também o marco a partir do qual a gigantesca limpeza étnica encontra o seu fecho de ouro, quando a Inquisição (maldita), sob a direcção de Torquemada, decide queimar qualquer coisa que ofereça resistência real ou virtual ao poder da Igreja e das Coroas unidas de Aragão e Castela. Ajustadas as contas com os infiéis islâmicos, chegara a vez dos judeus. Alguns aumentarão a lista dos executados pela Inquisição (maldita) espanhola; os demais serão forçados, por decreto real, a se converter ou a deixar a Espanha. Esta é a cena que se abre aos personagens de Noah Gordon. Inquisidores vivendo muito bem (a Inquisição ficava com um terço dos bens dos hereges), gente da Corte (os outros dois terços ficavam na Corte), judeus convertidos e acusados de práticas clandestinas (queimados, às vezes, ao lado de antigas e ricas famílias de cristãos criadores de casos) e judeus não-convertidos. Os não-convertidos seriam obrigados a fugir por causa do decreto. E foi exactamente o que fizeram, todos menos Yonah Helkias Toledano, personagem central de Gordon. Sendo apenas um garoto indefeso, no dia em que o pai é vítima de um derradeiro pogrom, Yonah não consegue fugir e fica solto nos campos da Espanha, vagando num burro que ele chama secretamente de Moisés. Yonah Toledano será o fio condutor de uma história ambientada há quinhentos anos no sul da Espanha e no reino de Aragão, quando os autos-de-fé queimavam oito mil pessoas e soberanos católicos substituíam os infiéis no palácio do Alhambra, em Granada. Ele vai trabalhar na terra como peão, num calabouço como servente, será pastor de ovelhas nas montanhas desertas da Andaluzia, marinheiro, aprendiz de amieiro, médico, cirurgião, polidor de armaduras e tradutor de texto hebraico proibido. Adquire, assim, a experiência e a capacidade de defesa que o mantiveram vivo até o final da história. Vivo e não-convertido. Torcendo por uma vida suficientemente longa para levar os filhos adultos aos lugares secretos, acender as velas do shabat, entoar as preces nas línguas desconhecidas e deixar o resto, como diz o autor, nas mãos de Deus.

O primeiro filho. Toledo, Castela, 23 de Agosto de 1489. O filho do ourives
O mau tempo começou para Bernardo Espina num dia em que o ar caía pesado como ferro e a luz altaneira do sol era uma praga. Naquela manhã, o seu consultório apinhado de gente ficou quase vazio quando a bolsa de água de uma mulher grávida estourou; os dois pacientes que não saíram foram banidos por ele. Não se tratava sequer de uma cliente; apenas uma moça que levara o pai idoso ao médico por causa de uma tosse que não parava. Era o seu quinto bebé e emergiu sem delongas para o mundo. Espina pôs nas mãos o menininho rosado, lustroso, e, quando bateu nas pequenas nádegas, o uivo estridente do vigoroso peãozinho provocou risos e brados de alegria nos que esperavam do lado de fora. O parto levantou o ânimo de Espina com a falsa promessa de um dia feliz. Como não tinha compromisso à tarde, estava pensando em preparar uma cesta com doces e uma garrafa de vinho tinto para ir com a família até ao rio. Enquanto as crianças chapinhassem na água, ele e Estrella poderiam sentar-se na sombra de uma árvore, bebericar, beliscar os doces e conversar sossegadamente.
Estava acabando de atender o último paciente quando um homem, usando a batina castanha de um noviço, entrou saltitando no pátio montado num burro. O animal parecia ter sido forçado demais num dia quente como aquele. Cheio de contida pompa e entusiasmo, o homem balbuciou que a presença do senhor médico estava sendo solicitada no Mosteiro da Assunpção pelo padre Sebastián Alvarez. O prior espera que vá de imediato. O médico apostou que o homem sabia que ele era um convertido. As maneiras continham o respeito devido à sua profissão, mas havia insolência no tom, quase o mesmo tom (embora não de todo) que o homem teria usado para se dirigir a qualquer outro judeu. Espina assentiu e tomou providências para que dessem alguns goles de água ao burro, comida e bebida ao homem. Tomou também a precaução de mijar, lavar o rosto e as mãos, engolir um pedaço de pão. O noviço ainda estava comendo quando Espina saiu para atender à convocação». In Noah Gordon, O Último Judeu, Uma história de terror na Inquisição, 2000, tradução de Mário Molina, Editora Rocco, ISBN 978-853-251-171-6.

Cortesia de Erocco/BertrandE/JDACT