quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Stonehenge. Bernard Cornwell. «O forasteiro tinha a cabeça baixa e os calcanhares pendiam-lhe quase até ao chão. Vestia uma capa de lã tingida de azul e trazia um arco na mão direita, enquanto do ombro esquerdo…»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Templo do Céu
«Os deuses falam por sinais. Pode ser uma folha caindo no Verão, o grito de um animal moribundo ou a ondulação feita pelo vento num lago. Pode ser o fumo junto ao solo, uma abertura nas nuvens ou o voo de uma ave. Mas naquele dia os deuses enviaram uma tempestade. Foi uma tempestade enorme, uma tempestade que seria recordada, embora o povo não nomeasse o ano por essa tempestade. Pelo contrário, chamaram-lhe o Ano em que chegou o Forasteiro. Isto porque um forasteiro chegou a Ratharryn no dia da tempestade. Era um dia de Verão, o mesmo em que Saban quase assassinou o seu meio-irmão. Naquele dia os deuses não falaram. Gritaram. Saban, como todas as crianças, andava nu no Verão. Tinha menos seis anos que o seu meio-irmão, Lengar, e como ainda não passara as provas da idade adulta, não tinha cicatrizes tribais nem marcas de morte. Mas as provas estavam apenas a um ano de distância e o pai instruíra Lengar para que levasse Saban à floresta e lhe ensinasse onde se encontravam os veados, onde se escondiam os javalis, onde ficavam as tocas dos lobos. Lengar ofendera-se com a tarefa, portanto, em vez de ensinar o irmão, arrastou-o por moitas de espinhos de modo a fazer sangrar a pele do rapaz queimada pelo sol. Nunca te vais tornar um homem, escarneceu, Lengar. Sensato, Saban nada disse. Havia já cinco anos que Lengar era um homem, de modo que tinha no peito as cicatrizes azuis da tribo e nos braços as marcas de caçador. Trazia consigo um arco feito de teixo, com pontas de osso e uma corda de tendão bem esticada e untada com gordura de porco. Vestia uma túnica de pele de lobo e tinha o cabelo comprido entrançado, atado com uma fita de raposa. Era alto, de rosto estreito, sendo considerado um dos grandes caçadores da tribo. O seu nome significava Olhos de Lobo, uma vez que o seu olhar tinha uma tonalidade amarelada. Tinham-lhe dado um nome ao nascer mas, como muitos na tribo, recebera outro ao tornar-se adulto.
Saban também era alto e tinha longo cabelo negro. O seu nome significava Favorito e na tribo muitos pensavam que era adequado, já que apenas com doze Verões, Saban prometia ser formoso. Era forte e esguio, trabalhava muito e sorria quase sempre. Lengar raramente sorria. Tem uma sombra no rosto, diziam dele as mulheres, apenas quando não as pudesse ouvir, pois era provável que Lengar viesse a ser o próximo chefe da tribo. Lengar e Saban eram filhos de Hengall, e este o chefe do povo de Ratharryn. Durante todo aquele longo dia, Lengar levou Saban através da floresta. Não encontraram veados, javalis, lobos ou ursos. Limitaram-se a caminhar, tendo chegado à tarde ao sopé da colina, para ver que toda a terra a ocidente estava sombreada por uma massa de nuvens negras. Os relâmpagos riscavam o monte de nuvens escuras em direcção à floresta longínqua, deixando o céu a arder. Lengar acocorou-se, com uma mão no arco polido, observando a tempestade que se aproximava. Devia ter já iniciado o regresso a casa, mas queria assustar Saban, de modo que fingiu não estar preocupado com a tempestade, que era uma ameaça dos deuses. Foi enquanto observavam a tempestade que chegou o forasteiro.
Montava um pequeno cavalo castanho, branco de suor. Como sela usava um cobertor de lã dobrado e as rédeas eram fios de fibra de urtiga, embora nem necessitasse delas, já que estava ferido e parecia cansado, deixando a sua pequena montada escolher o atalho que subia a escarpa íngreme. O forasteiro tinha a cabeça baixa e os calcanhares pendiam-lhe quase até ao chão. Vestia uma capa de lã tingida de azul e trazia um arco na mão direita, enquanto do ombro esquerdo pendia-lhe uma bolsa cheia de flechas ornamentadas de penas de gaivota e corvo. Usava uma barba negra e curta, e as marcas tribais do seu rosto eram cinzentas. Lengar sussurrou a Saban que ficasse em silêncio, seguindo depois o forasteiro para oriente. Lengar tinha uma flecha metida no arco, mas o forasteiro nem uma só vez se voltou para ver se estava a ser seguido, de modo que Lengar contentou-se em deixar a flecha descansar na corda. Saban gostaria de saber se o cavaleiro ainda vivia, pois parecia um morto, inerte, atirado para o lombo do cavalo. O forasteiro era um Fronteiriço. Até Saban o sabia, pois apenas o Povo da Fronteira montava pequenos cavalos peludos e usava cicatrizes cinzentas no rosto. O Povo da Fronteira era inimigo, porém Lengar não soltou a flecha. Limitou-se a seguir o cavaleiro, levando Saban atrás de si, até que por fim o Fronteiriço chegou à beira das árvores onde cresciam fetos. Aí, o forasteiro parou o cavalo e ergueu a cabeça para olhar a suave elevação, enquanto Lengar e Saban se acocoravam, escondidos por trás dele.
O forasteiro olhou os fetos e mais ao longe o pasto, onde o solo era mais fino, depois das marcações. Havia túmulos espalhados pela crista baixa do terreno. Os porcos comiam os fetos, enquanto o gado preferia a terra de pastagem. Aqui ainda havia sol. O forasteiro manteve-se muito tempo nos limites do bosque, em busca de inimigos, mas sem os ver. Para norte do sítio onde se encontrava, havia campos de trigo limitados por espinheiros, sobre os quais as primeiras nuvens, arautos da tempestade, seguiam a sua sombra; porém à sua frente havia sol. Havia vida diante de si e escuridão por trás. O pequeno cavalo, solto, agitou-se subitamente junto aos fetos. O cavaleiro deixou-se levar. O animal subiu a encosta suave até aos túmulos. Lengar e Saban esperaram até o forasteiro desaparecer no horizonte, depois seguiram e, chegando ao cimo, acocoraram-se numa vala funerária, para verem que o cavaleiro se tinha detido junto ao Velho Templo. Ouviu-se o ribombar de um trovão e uma rajada de vento alisou a erva em que o gado pastava. O forasteiro escorregou de cima do cavalo, atravessou a enorme vala do Velho Templo e desapareceu no meio das frondosas aveleiras que cresciam dentro do recinto sagrado. Saban percebeu que o homem vinha em busca do santuário. Mas Lengar estava atrás do Fronteiriço, e Lengar não era dado a piedade». In Bernard Cornwell, Stonehenge, 1999, Editora HarperCollins, 2008, Editora Record, tradutor Alves Calado, ISBN 978-850-107-985-5.

Cortesia de ERecord/JDACT