segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Histórias íntimas. Mary del Priore. «… a água, esse bem mais precioso em nossos dias, só aquela de rios e poços ou a vendida em lombo de burro ou de escravos. Privacidade, portanto, zero»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Século XXI: maior tolerância e quebra de tabus são a marca da primeira década. Bancas de jornais exibem mulheres frutas de todos os tamanhos. Nas propagandas, casais seminus lambem os beiços e trocam olhares açucarados. Nas novelas de televisão, em horário nobre, nenhum personagem hesita em ractificar as suas preferências sexuais, em expô-las e em expor-se. Na frente das câmaras, segredos pessoais são revelados sem constrangimentos. Práticas antes marginalizadas estão nas telas. A internet abriu um universo de possibilidades para o sexo. Da pedófilia à prostituição, tudo se encontra no mercado virtual. Nos sítios, ricos e famosos falam abertamente da sua vida particular. A privacidade entrou na rede social. Todo o mundo sabe onde está todo o mundo, o que faz, com quem ficou ou dormiu. O paradeiro de cada indivíduo é mostrado no Twitter, onde também aparecem as primeiras referências ao sexting (contração de sex e testing): prática de divulgação de conteúdos eróticos através de telefones móveis. Muitos iniciam relacionamentos por meio das redes sociais, como Facebook ou Orkut. Nelas começam os contactos, namoram virtualmente, e um número crescente desses relacionamentos virtuais acaba no encontro físico das partes, na igreja. O costume iniciou-se através das mensagens de texto SMS, mas, com o avanço tecnológico, incluiu-se o envio de fotografias e de vídeos, inclusive pornográficos. Ao mesmo tempo, a gravidez na adolescência aumentou. Segundo pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de casamentos caiu. Além disso, aumentou a quantidade de mulheres mais velhas que se unem a homens mais jovens e elas procriam mais tarde, também. Se a ideia de interioridade dava consistência à vida dos indivíduos no passado, hoje, vivemos apenas o instantâneo. Em toda a parte, maior dose de superexposição é possível por meio das redes e da comunicação social, e o exibicionismo é uma das motivações para o seu uso. Expõe-se o ego, sem meios-termos. Habitamos uma sociedade narcisista e confessional. Como mudamos através dos tempos! A atenção que damos ao corpo, à nudez e ao sexo é cada vez maior. Outrora era diferente, homens e mulheres tiveram que se dobrar às chamadas boas maneiras. Andar nu, fazer sexo, defecar ou urinar publicamente eram hábitos, ainda presentes em várias culturas ou grupos, que foram lentamente banidos do nosso convívio. A educação do corpo trilhou sendas variadas e obrigou o cumprimento de fórmulas de contenção, contrariando o desejo e os apelos da natureza. Antes, malcheirosos e sujos; hoje, perfumados. Ontem, marcados por cicatrizes. Actualmente, cauterizados. No passado, castos e cobertos. Agora, desnudos e exibidos. Evolução? Não... Um longo processo de transformações ao sabor de vários dados: técnicos, económicos e educacionais. Este livro é uma exploração histórica da sensibilidade em relação a alguns componentes de nossa vida íntima, que sofreram tremendas alterações. Para sintetizar quinhentos anos de história, a autora recorreu a muitas de suas pesquisas, algumas já conhecidas na Academia. As relações com a intimidade reflectem como os processos civilizacionais modelaram gradualmente as sensações corporais, acentuando o seu refinamento, desenrolando as suas subtilezas e proibindo o que não parecia decente. A história que vamos contar inscreve-se nesse quadro. É aquela do polimento das condutas e do crescimento do espaço privado e da auto-repressão. Do peso progressivo da cultura no mundo das sensações imediatas, do prazer e do sexo. Do cuidado de si e do trabalho permanente para definir as fronteiras entre o íntimo e o social. De como esse complexo mecanismo migrou do Velho para o Novo Mundo, atravessando séculos. E de como, hoje, a relação entre os sexos, na intimidade ou fora dela, está em plena transformação. Resta saber aonde ela nos levará...

O corpo. A igreja. O pecado
Podemos olhar pelo buraco da fechadura para ver como nossos antepassados se relacionavam?! De fechaduras, não! Elas custavam caro e o Brasil, na época da colonização, era pobre. Podemos, sim, enxergar através das frestas dos muros, das rachaduras das portas. Por ali se via que a noção de privacidade estava sendo construída, estava em gestação. E construída em meio a um ambiente de extrema precariedade e instabilidade. Em terras brasileiras, colonos tiveram que lutar, durante quase três séculos, contra o provisório: o material, o físico, o político e o económico. Viver em colónias, como se dizia então, era o que faziam. Sobreviviam... E sobreviviam sob o signo do desconforto e da pobreza. Habitavam casas de meias paredes cobertas de telhas ou sapé, com divisão interna que pouco ensejava a intimidade. Nelas faltavam móveis que oferecessem algum conforto, ou boa iluminação, devido à falta de vidros. Instaladas em vilarejos sem arruamento, ali os animais domésticos pastavam à solta e havia lixo em toda a parte. A água, esse bem mais precioso em nossos dias, só aquela de rios e poços ou a vendida em lombo de burro ou de escravos. Privacidade, portanto, zero». In Mary del Priore, Histórias íntimas, Sexualidade e erotismo na história do Brasil, Editora Planeta do Brasil, São Paulo, CDD-302-309-81, 2011, ISBN 978-857-665-608-1.

Cortesia de EPlaneta/JDACT