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O Amor Cortês. Reflexões Historiográficas
«(…) Amor Cortês pode
ser apontado como um momento inovador na complexa história humana dos modos de
sentir e das suas formas de expressão. A sua emergência através da poesia
trovadoresca deixou tão indeléveis marcas no repertório ocidental de possibilidades
estéticas de expressar e vivenciar o amor, e na própria imaginação do homem
ocidental concernente à temática amorosa, que frequentemente se aponta o despontar
dos trovadores medievais no século XII como o instante mesmo da invenção do
amor romântico no Ocidente. Em que consistia, antes de mais nada, este Amor
Cortês que rapidamente se difundiu na Europa a partir das cantigas dos
trovadores do sul da França, das suas próprias vidas, ou dos romances
que tiveram na história de Tristão e Isolda o seu exemplo mais extremado
e no Lancelote de Chrétien de Troyes a sua exposição mais sistemática?
Antes de tudo, conheçamos as personagens fundamentais do Amor Cortês. No centro de
tudo, um Amador que se entrega de corpo e alma a uma paixão incontrolável
e ao dedicado serviço amoroso da mulher amada. E ela: uma Dama que, aos
olhos do amante apaixonado, é a mais bela e perfeita de todas as mulheres. Uma Dama, deveremos acrescentar, que é em
geral inatingível, ou por estar espacialmente inacessível (talvez por morar num
país distante) ou, quem sabe neste caso um obstáculo ainda mais intransponível,
por ser socialmente inacessível. Nesta última situação aparece eventualmente
um terceiro personagem: o marido da dama, já que com alguma frequência a
mulher eleita pelo trovador provençal ou pelo herói do romance cortês é casada
ou comprometida (via de regra com um poderoso senhor feudal). Por fim, as
personagens coadjuvantes: em alguns casos um confidente da confiança do
trovador apaixonado, e em outros casos os delactores, os aduladores,
os intrigantes, os maledicentes da vida amorosa e os bisbilhoteiros,
globalmente classificados como losengiers pelas cantigas trovadorescas,
que estão sempre prontos a denunciar o caso de amor ou a difamar os seus
envolvidos.
Envolvendo tudo, um Amor
tão extremado quanto ambíguo, trazendo no mesmo movimento uma indisfarçável
carga de erotização e uma dimensão idealizada, ao mesmo tempo em que carrega a
mistura dramática que faz com que este amor subtil tanto enobreça e
eduque aquele que ama, como o empurre tragicamente em direcção ao sofrimento
e até à morte. Completam o conjunto de sentimentos que o Amor
Cortês envolve o desejo, maior do que tudo no mundo, mas
irrealizável sob pena de que se acabe o próprio amor, e o perigo de que
este amor seja descoberto, e que isto acarrete no fim da relação amorosa ou abale
a reputação da dama. Todos estes elementos habitam o plano da sensibilidade e,
talvez pela primeira vez com tal intensidade, ameaçam trazer o sentimento para
um lugar destacado no cenário medieval, acima mesmo da fé religiosa, da razão
erudita, do utilitarismo quotidiano. Conclamar uma autonomia dos sentimentos
implica naturalmente na possibilidade de uma nova proposta de leitura das
relações entre os dois sexos, relações que, do ponto de vista da cortesia, não
deveriam ser mais regidas exclusivamente pela força, pelo instinto, pelo interesse,
pelo acomodamento entediante.
Não é de se estranhar
que o Amor Cortês tenha apresentado, como se verá adiante, uma
decisiva faceta antimatrimonial, já que o casamento era precisamente o
território da sujeição do feminino pelo masculino, do acomodamento do indivíduo
aos interesses sociais e familiares, da tutela religiosa através do sacramento.
Daí o papel simbólico do marido ciumento, traído, ou desprezado secretamente
pela esposa em favor do amante cortês. Este marido, entrincheirado de dentro do
casamento oficial, representa o mundo da ordem contra o qual se insurge a
primazia dos sentimentos proposta pelo Amor Cortês. Mas também não se trata
de apenas liberar os sentimentos livremente. Amar dentro dos parâmetros
corteses pressupõe também um ritual, um sistema de normas e atitudes a serem
observadas e aprendidas, uma determinada concepção acerca de como conduzir o sentimento
amoroso que adquire viva expressão na poesia dos trovadores. Em primeiro lugar
parte-se da valorização suprema da Dama, e da sujeição do poeta à
Dama em nome do Amor. Esta sujeição aproveita aqueles ritos políticos e o
imaginário feudo-vassálico que orientavam as relações entre os vários
componentes da nobreza na Europa Ocidental do século XII. Assim, a relação de
entrega do amador à Dama é traduzida em termos das instituições
feudo-vassálicas, ocupando a Dama a posição da suserana a quem o poeta deve fidelidade.
O já conhecido ritual da Homenagem, que sela o compromisso entre o
vassalo e o suserano, é aqui transposto para o Serviço ou para a
vassalagem amorosa que o poeta presta à sua Dama. Este conjunto de apropriações
leva alguns historiadores a encararem o fenómeno da cortesia dentro de um
rigoroso enquadramento feudo-vassálico». In José D’Assunção Barros, A Arena dos
Trovadores, 1995, Os Trovadores
Medievais e o Amor Cortês. Reflexões Historiográficas, revista Alethéia,
UFG, Abril/Maio 2008.
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