terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Psiché. Fernando Campos. «Caminho até ao bar. Uma caixa de fósforos, se faz favor. O gesto mecânico do empregado, olhar distante, rosto enjoado, passando o pano sórdido sobre o mármore do balcão…»

jdact

A memória do esquecimento
«(…) Pairava no ar um certo receio de se virem a descobrir realidades penosas que fossem contra as conveniências. Ela, sim. Sentia‑se desinibida à beira dele, a conversar com ele. O visconde de Cairu? surpreendi‑a uma vez a perguntar‑lhe. É verdade, respondia ele. E o pai?... Como é que o vovô soube?..., tornava ela. E ele lá contava, com a voz um pouco sumida, à puridade, a estranha história... Flanela azul às riscas... sentado na borda da cama..., o faiscar do anel no dedo mindinho... Basta um pormenor para lhe avivar a imagem! Ela estendia‑lhe as mãos de costas para cima. Ah! É um rapaz! Vou ter um bisnetinho! Mas a vinte e seis de Dezembro nascia uma menina que ele já não pôde conhecer. Foi por isso que não desci esse Natal ao Porto. Tampouco pela Páscoa me fiz à estrada. Tinha, entretanto, tirado a carta e comprara um carro, motorizando‑me, fazendo preito ao progresso. Só lá para os fins dos exames, em Julho, princípios desse outro Agosto, de cinquenta e seis, cheguei do nordeste, nos olhos ainda a longa negra fita de alcatrão ou paralelipípedos a enrolar‑se no galgar dos quilómetros, nos rins o cansaço das intermináveis horas sentado ao volante do Volkswagen, que vinha todo vomitado das voltinhas do Marão. Foi António o primeiro que falou. Não porque sentisse necessidade de abordar o assunto. Aliás, posteriormente, quando eu já me encontrava senhor dos acontecimentos, compreendi aquele como que preconceituoso pudor da família em rodear o caso de um espesso mutismo. O que o fez falar foram as circunstâncias... Aí estava ela! Não, não olhasse ainda, para não dar nas vistas!... A mesa da terceira fila, atrás de mim...
Animava‑se o café àquela hora, onze e meia da manhã, acabada a missa. Homens fumando, chávena vazia à frente ou por instantes aflorada aos lábios, jornal aberto, folheado, saboreado. Fatos cuidados, na ausência de nódoa ou enxovalho, no vinco recente da calça. Barba escanhoada, camisa lavada. Catarro matinal, tabacal. Aos pés de um deles, cabelo ralo todo lambido de brilhantina, para trás, cara chupada, o macaco coçado, os tornozelos escanzelados a saírem das peúgas lassas e do calçado cambado, faz o engraxador chiar e estalar a tira de pano lustroso ao polir do sapato. Dá‑se um casal ao luxo da fofa loira torrada com manteiga, em palitos, lambuzando os dedos. Os dela são papudos e brilham de jóias. Por detrás do tinir das xícaras, pires e talheres, das vozes dos empregados de mesa a comunicarem ao bufete os pedidos dos clientes (Sai um galão! Três pingos e um copo de leite com canela!...), por entre a névoa que paira no ar, misto de fumo e de vapor que embacia as vidraças, vêm de fora as vibrações do tanger dos sinos. Coisa concreta, que quase se corta à faca, a respiração e o perfume domingueiro. Que semelhança!, continuava António. Enquanto o escutava, eu ia esperando a oportunidade de me voltar para trás. Aparecia por ali muitas vezes, no Amial, dizia a voz dele. Morava talvez perto ou então andava a espiá‑lo, a persegui‑lo. Isto pelo menos era o que insinuava sua mulher, a Catalina, desconfiada... Cruzava com a desconhecida na rua, nos lugares mais diversos e imprevisíveis da cidade, na Cordoaria, na Avenida dos Aliados, na Lapa. Olá, sobrinho!, palavras dela no ar quando passava... As feições um pouco menos amaciadas mas muito parecidas com as de Fernanda e com um retrato antigo que ele vira da avó Ana... Teria aí uns vinte e dois anos. Parece que aquilo fora caso acontecido aquando da morte de Raquel... Estranha coincidência! O nascimento e a morte! Para Silva Lisboa tornara‑se motivo de funda meditação. Albertina, porém, não podia admitir a junção dos dois factos, das duas dores a lancear‑lhe a alma. Em cima da perda da filha, aquilo!... Olá, sobrinho! Que queria tudo isso dizer?...
Levanto‑me. Vou comprar qualquer coisa e depois venho olhando de frente, digo, deixando António a puxar de um cigarro. Caminho até ao bar. Uma caixa de fósforos, se faz favor. O gesto mecânico do empregado, olhar distante, rosto enjoado, passando o pano sórdido sobre o mármore do balcão, os ombros e a cabeça recortados na superfície polida do grande espelho que corre a todo o comprimento da parede. Procuro nos retalhos de imagens, entre prateleiras de garrafas, reconstituir o cenário atrás de mim, enquanto pago os fósforos. No embaciamento daqueles estilhaços de prata velha a custo reconheço António sentado à mesa e, três filas além, a mancha de um vestido claro, uma vaga sombra de mulher que se ergueu e se afasta. Volto‑me para regressar. E este voltar‑me... Como o virar de página do tempo! Trinta anos transcorridos!... Aquele meu voltar‑me para não encontrar ninguém! Apenas uma mesa vazia. No pires, junto à chávena, um guardanapo de papel amarrotado, uma ponta de cigarro esmagada... Perdi para sempre a ocasião de alguma vez me encontrar com ela? De saber quem era?... Os anos desataram a transformar em húmus e a diluir em éter, numa vertigem, aqueles que foram protagonistas ou meras testemunhas desses insólitos acontecimentos. Caíram na voragem novos e velhos: Silva Lisboa, Albertina, outros... Os que ficaram, ainda quando aqui e ali roçaram por eles vestígios vivos desse passado, fecharam‑se numa cómoda ausência de curiosidade ou uma estudada distanciação e apatia. Como que acabaram por esquecer». In Fernando Campos, Psiché, Difel, Lisboa, 1987, Dl nº 83973.

Cortesia de Difel/JDACT