quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

A Audácia dessa Mulher. Ana Maria Machado. «De profissão, de paixão, de maldição, como queira..., confirmou ele. Então é a pessoa que nós chamámos. Confesso que continuo sem saber por quê. Não vejo em que eu possa encaixar-me…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Porquê eu? Desde o começo da reunião Virgílio estava fazendo essa pergunta a si mesmo. Só agora surgia a oportunidade de fazê-la em voz alta. Mas não teve resposta. Em vez disso, desencadeou duas frases quase em simultâneo. Desculpe, mas não entendi a sua dúvida, disse o homem corpulento sentado à cabeceira da mesa comprida. Tirou-me as palavras da boca, comentou em voz alta a moça magra de cabelo encaracolado, que chegara ainda mais atrasada do que Virgílio e se sentara numa cadeira extra, num cantinho. Diante disso, ele achou que convinha explicar melhor: bom, quando eu cheguei, todos já estavam nos seus lugares, mas a reunião ainda não tinha começado. Quer dizer, eu acho que não perdi nada. Você apresentou-se, o que foi muito bom, porque eu, por exemplo, só o conhecia de nome, e começou a dizer que estávamos todos aqui reunidos para discutir o projecto de uma próxima novela. Falou em prazos, recursos, cronogramas. Depois passou a palavra ao autor, ao director, ao pessoal da produção, a quem vai escolher o elenco. Ficámos a saber que a história se passa no século XIX, no Rio de Janeiro, mas com certeza vai incluir também uma viagem das personagens à Europa... Enfim, tudo o que nós todos ouvimos e eu não preciso ficar repetindo. Tenho a certeza de que prestei atenção e não perdi nada. Mas não consigo deixar de achar que entrei na sala errada, ou vim no dia errado. Apesar de o meu nome estar lá fora, com a recepcionista. Quer dizer, porque me chamaram? Eu não tenho nada a ver com isso. Nem eu..., acrescentou novamente a moça do cabelo encaracolado. Não se chama Virgílio Pádua Toledo?, perguntou o grandalhão, ignorando o comentário dela. Exactamente. Podia dizer aos outros o que faz? Sou cozinheiro e dono de um restaurante. Do Marco Polo, na Lagoa. E arquitecto de profissão, creio. De profissão, de paixão, de maldição, como queira..., confirmou ele.
Então é a pessoa que nós chamámos. Confesso que continuo sem saber por quê. Não vejo em que eu possa encaixar-me na produção de um programa de televisão como esse. Pelos rostos dos outros em volta da mesa, Virgílio ia percebendo que a curiosidade não era só sua. Com excepção da moça magra, todos pareciam à vontade ali, no seu ambiente. Eventualmente trocavam comentários em voz baixa, já que se conheciam. Dava para ver que eram do ramo. Já deviam estar acostumados a trabalhar juntos e não disfarçavam ocasionais olhares meio intrigados em direcção a ele e à moça, que nesse momento confirmava com um gesto de cabeça a última frase de Virgílio. Sorrindo, o homem corpulento que comandava a reunião e se apresentara como José Egídio, director daquele núcleo, voltou-se então para ela e disse: pelo jeito, está com a mesma dúvida. Pode ter certeza de que estou. Mas primeiro não se quer se apresentar, Bia?, convidou ele. Meio hesitante, ela começou: o meu nome é Beatriz Bueno e sou jornalista e..., bom, biscateira cultural. Sorrisinhos. E escritora, acrescentou José Egídio. Autora de livros de viagem de muito sucesso. E de muito boa qualidade, segundo me garante o Muniz, eu ainda não tive oportunidade de ler. Mas como todos os que conhecem o nosso autor aqui presente sabem do seu nível de exigência, não preciso insistir no valor decisivo que uma recomendação dessas teve na minha decisão de a convidar para estar hoje aqui connosco e se juntar a nós neste projecto que estamos a começar.
Para fazer o quê?, perguntou ela, muito directa. Em vez de responder, José Egídio fez um sinal com a cabeça em direcção ao Muniz, enquanto devolvia a pergunta: ele já vai explicar. Mas antes eu gostaria de saber, por curiosidade: para que acha que foi chamada? Imagino que por alguma estratégia nova de divulgação, para fazer uma matéria sobre essa futura série, é série, não? Tenho a impressão de que era o que eu tinha entendido, mas ele acabou de falar em novela e eu fiquei na dúvida. Os gestos de assentimento em volta da mesa confirmaram que não era uma novela, mas uma série. Só que a moça nem se interrompeu e continuou a falar: e vou logo dizendo que é um equívoco, eu não tenho a menor condição, não trabalho no segundo caderno e lá no jornal é tudo muito compartimentado. Eu só escrevo sobre viagens, no caderno de turismo. E nem vou à redacção, escrevo em casa ou num hotel quando estou fora, mando o texto pela internet. No fundo, sou só uma colaboradora fixa, não conheço quase ninguém lá, nem dá para pedir uma ajuda numa cobertura...
Hesitou um pouco e acrescentou: além disso, tem uma coisa meio delicada. Eu trabalho para o jornal. Quero dizer, não posso receber de uma empresa ou de um projecto como esse para trabalhar para os senhores. Não seria ético, entendem? Eu sei que é super-comum, muitas pessoas o fazem, hoje em dia todos aceitam. Mas eu acho que sou meio antiquada nessas coisas. Não estou querendo julgar ninguém nem criticar colegas, mas o caso é que eu não faço isso. Para mim, antes de mais nada, vem o interesse dos leitores. Não posso ficar colhendo elogios no jornal. Quero dizer que é um grande mal-entendido. Voltando-se para Virgílio, José Egídio repetiu a pergunta: e você? O que imagina que lhe vamos pedir?» In Ana Maria Machado, A Audácia dessa Mulher, 1999, Editora Objectiva (Prisa Edições), 2011, ISBN 978-857-962-114-7.

Cortesia de EObjectiva/JDACT