quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Corpo Reflectido. Cidália Dinis. «É do encontro com a cidade, o espaço, com o quotidiano e a circunstância que a sua poesia espelha temporalidade, encanta incautos…»

Cortesia de wikipedia
A Enganosa Respiração da Manhã. Inês Lourenço
«(…) Na transição para o segundo momento, é com Os Solistas que Inês Lourenço estabelece um pacto entre poesia e música, deixando transparecer uma relação fundada em laços de grande cumplicidade e espiritualidade, como podemos inferir desde logo a partir dos títulos, convocadores de um universo umbilicalmente ligado com a música – Os Solistas, Glenn Gould, Execução, onde pinta a sua relação com a cidade, o quotidiano, como em Litania para um limoeiro urbano:
«Para mover o céu e os alicerces, partir
velhos caixilhos e cantarias, chega o último
dos morados. Cumprido o tempo das
polpas douradas, o estio das crianças ficará
ainda algum tempo nos retratos
sépia, com hidrângeas e bicicletas, expulso
para sempre o cio dos gatos e o impudor
dos ramos nas florações precoces».
Mas, se esta relação com a cidade, o quotidiano vinha já sendo esboçada desde o seu primeiro momento, com Cicatriz 100%, é agora num terceiro momento, com Teoria da Imunidade e Um Quarto com Cidades ao Fundo, este último antologia de poesia reunida, que a poesia de Inês Lourenço ganha contornos mais nítidos e encontra na cidade o Corpus do quotidiano e da realidade que pretende fotografar, onde o comum da vida não é mais do que o sopro da vitalidade, da temporalidade. Destes três momentos ressalta, segundo Isabel Allegro Magalhães, um universo de sensações que são o lugar de arrebatamento, com o desejo e a imaginação a convocá-las, uma epistemologia dos sentidos, que constrói o erotismo e a sensualidade na relação com os seres, os acontecimentos, a corporeidade da existência. No seio dessa fixação com o comum da vida, onde são fotografados pequenos nadas, constantes do presente ou da decantação na memória, o ritmo da cidade é ouvido como um sopro, ritmo da circularidade bio-cultural feminina. Desse sopro purificador, veículo de vida e de regenerescência esboça-se A Enganosa Respiração da Manhã, livro feito de uma enganosa simplicidade, onde no dizer de Valter Hugo Mãe reina a aparente facilidade, em que o mais que se diz está na subtileza como se lida com conceitos e referências de cariz erudito; onde a expiração e inspiração simbolizam a produção e a reabsorção do universo, num tempo em que a manhã é simultaneamente pureza e promessa, sem qualquer mácula de perversão.A Enganosa Respiração da Manhã é, pois, o reflexo de uma voz que num percurso de vinte anos se foi delineando, num progressivo e contínuo amadurecimento, assente simultaneamente numa poética da sabedoria e da emoção concebida pela razão. Desde sempre, e segundo Valter Hugo Mãe, que a escrita desta autora se faz desse estar acima parecendo levar o chão nos pés, ou vir ao chão suportando o céu nas mãos. É do encontro com a cidade, o espaço, com o quotidiano e a circunstância que a sua poesia espelha temporalidade, encanta incautos:
Poesia Toda
«Abro e folheio
o grosso volume da última
Poesia Toda, a encantar
incautos, a palavra toda
enche-nos a boca, pronuncia-se
voraz e fatalmente, como
quem anseia possuir o ar».
Mais do que uma recolha de contida e rigorosa escrita, esta obra, marcada por uma alternância entre poemas curtos e longos, reflecte toda uma lógica assente numa sequencialidade orgânica e vincadamente serial, isto é, compõe-se de poemas claramente entrelaçados, numa límpida construção que prende e envolve de forma poderosa o leitor numa visão que se quer articulada. Inês Lourenço é, desde logo, criadora de ponderado verso, como verso calibrado por metrónomo, cortado por mão segura. Como uma faca. Sem paradas inúteis. Vertiginosamente, em que tudo é dito de forma lapidar e cristalina:
Ephebo
«Sim à harmoniosa proporção,
à linha do pescoço na teia
esvoaçante dos cabelos, ao dorso
flexível, no ímpeto animal dos passos.
Sim ao desafio fascinado dos olhos,
na incerteza nocturna do horizonte».
Oscilando entre uma escrita marcada por um universo feminino, sem ser feminista, e uma apurada sensibilidade do mundo e da grande cultura, os seus textos são o reflexo da condição feminina, em clara articulação com os excelentes pintores, músicos». In Cidália Dinis, Corpo Reflectido, Trabalho apresentado no seminário Caminhos da Poesia Portuguesa Contemporânea, do Modernismo ao Pós-modernismo, Revista da Faculdade de Letras, Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXIII, Porto, 2006 [2008], Wikipedia.
Cortesia de RFLPorto/JDACT