sábado, 27 de fevereiro de 2016

Olga. Fernando Morais. «Para meu espanto, pude ver depositados em Washington documentos internos do PC brasileiro desconhecidos aqui e que tinham sido misteriosamente transferidos para os Estados Unidos»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) No modesto apartamento de Ruth Werner, a tenente coronel honorária do Exército Vermelho Soviético e uma das maiores escritoras alemãs, obtive cópias de depoimentos que ela tomara no fim dos anos 50 de sobreviventes de Neukõlln, Barnimstrasse, Lichtenburg e Rávensbruck (muitos dos quais já faleceram) e não utilizara integralmente no seu livro Olga Benario. O meu trabalho em Berlim Oriental teria sido infinitamente mais difícil sem a ajuda do jovem ítalo-germano-brasileiro Dario Canale (que eu havia entrevistado em 1967 no Brasil, quando ele esteve preso nas prisões da Polícia Federal sob a acusação de subversão). Dario ajudou-me na busca e selecção de material sobre Olga e Otto Braun, levou-me a conhecer a prisão de Moabit em Berlim Ocidental, e acabou por obrigar a sua sogra Elfriede Bruning, a convidar as suas amigas, militantes comunistas desde o começo do século, para jantares em sua casa, onde eu as esperava de gravador na mão. Além dos documentos obtidos, as entrevistas feitas por mim na República Democrática Alemã com pessoas que conviveram com Olga sob o nazismo foram valiosíssimas para a reconstituição da sua passagem pelo Brasil.
Durante os anos que passou em Barnimstrasse, Lichtenburg e Ravensbruck, ela contou com pormenores às companheiras de prisão a sua experiência brasileira: a paixão por Prestes, o deslumbramento com o Brasil, a expectativa seguida da frustração com a revolta fracassada, a emoção que lhe provocara a solidariedade dos companheiros no presídio da rua Frei Caneca, no Rio de Janeiro. Como a sua passagem pelo Brasil se tornara, para mim, a parte mais obscura da investigação, pressionei os amigos de Olga em Berlim até à irritação com perguntas sobre cada momento dos seus 17 meses no Rio de Janeiro, e em alguns casos obtive depoimentos torrenciais. De Berlim parti para Milão, onde investiguei, em tempo integral, no Archivio Storico del Movimento Operaio Brasiliano (mantido pela Fundação Giangiacomo Feltrinelli e guardado pelas unhas e os dentes de José Luís del Roio), onde está depositada boa parte da memória operária e comunista brasileira. As entrevistas e investigações feitas na Europa e no Brasil remetiam-me a outros endereços: o Nationat Archives e os arquivos do Departamento de Estado, em Washington, e o primeiro recesso parlamentar disponível foi dedicado às pesquisas nos Estados Unidos. Com a ajuda de Ralph Waddey, funcionário anglo-baiano do Departamento de Estado, e abusando da infindável paciência de Richard Gould director do Departamento Legislativo e Diplomático do National Archives, fiz um fascinante mergulho na papelada que me custou a modesta quantia de 50 centavos de dólar cada cópia xerográfica: além de incontáveis documentos secretos referentes à vida das minhas personagens, havia material abundante sobre a repressão à revolta comunista de 1935 no Brasil. Ironicamente eu iria encontrar, no coração de Washington, relatos copiosos sobre as torturas infligidas pela polícia brasileira ao dirigente comunista alemão Arthur Ewert, pistas indiscutíveis sobre a acção de espiões na direcção comunista e detalhes sobre o desmantelamento da revolta de 1935, tudo isto escrito por um agente do governo norte-americano. Para meu espanto, pude ver depositados em Washington (e disponíveis a 50 cents) documentos internos do PC brasileiro desconhecidos aqui e que tinham sido misteriosamente transferidos para os Estados Unidos.
De volta ao Brasil, retomei as entrevistas, revi datas e dados com Luís Carlos Prestes e com outros entrevistados e continuei à procura de sobreviventes de 1935 que pudessem dar depoimentos ou, pelo menos ajudar-me a conferir as informações de que dispunha. Foi nessa época que me lembrei de uma frase de um antigo chefe de reportagem, que costumava dizer que ao repórter, como ao avançado, não basta trabalhar direito, é preciso ter sorte. Eu tive, e muita. Foram meros golpes de sorte, por exemplo, que me levaram a duas personagens desta história, Tuba Schor e Celestino Paraventi. Ela eu descobri casualmente: o seu filho Nelson foi o médico que realizou o parto de minha ex-mulher, quando nasceu Rita, minha filha, e ao saber que eu escrevia sobre a vida de Olga, colocou-me em contacto com a mãe. Quanto a Paraventi, foi ele quem me descobriu: ao assistir a uma entrevista que eu dera ao repórter Ney Gonçalves Dias, na TV Manchete, sobre o livro em curso, ele procurou o seu sobrinho José Gregori, meu colega de bancada na Assembleia Legislativa, para me oferecer o seu delicioso depoimento sobre a passagem de Olga por São Paulo». In Fernando Morais, Olga, 1985, Editora Ómega, 1993/1994, Companhia das Letras, 1985/1999, epub, 2014, ISBN 978-857-164-250-8.

Cortesia de CdasLetras/JDACT