jdact
«(…)
E é preciso não esquecer Honor, o lugar de refúgio de Timoja, lembra Schaban, a
espicaçar o pai, que não lhe responde. Não queres contar-nos, agora, essa história
dos beduínos do deserto? Alguns viajantes aproximam-se e sentam-se junto deles para
ouvirem a narrativa, e o escudeiro conta o combate do Poço de Moisés com assaz de
floreados e gestos, pondo em valor à coragem e ousadia dos Guerreiros Azuis. Os
seus ouvintes bebem-lhe as palavras, enquanto os pajens dos mais ricos lhes preparam
infusões de menta e kafé, uma bebida negra e amarga mas muito aromática.
Outros fumam o kalean, um cachimbo de água com um longo tubo a terminar numa
ponta de cristal, por onde chupam o fumo de uma erva seca de Xiraz, que também
serve para mascar, na falta de cachimbo. Convidam-no a partilhar aqueles
pequenos prazeres, enquanto narra a sua aventura, e ele, com a insaciável
curiosidade de experimentar novas sensações, aceita com palavras de agradecimento
o tubo de madeira de convidado, que lhe oferece o dono do kalean para substituir
a sua boquilha.
Quando
a maioria dos passageiros dorme, o escudeiro percorre o Babelmandel, observando tudo e tudo registando. Apesar das suas consideráveis
dimensões, o zambuco só tem um mastro grande, com uma vela e um leme muito largo,
feito de tábuas delgadas. Estroncado e com poucos liames, tem o tabuado do casco
todo muito junto, cosido com fio de cairo, tão fortemente como se usasse pregadura,
tudo ensebado para tornar a embarcação estanque. Não tem cobertura de madeira e
todo o tabuado está dividido em repartimentos interiores para guardar as mercadorias,
tudo coberto com olas (umas folhas de palmeira secas e entretecidas) dispostas como
um telhado para a água da chuva correr pelos lados até ao costado e bomba, sem molhar
a fazenda. Por cima da carga, em vez da tolda ou cobertura de madeira dos
barcos do Ocidente, usam panos grossos revestidos de quil, um betume parecido
com o breu, cozido com azeite de coco e de peixe, e sobre eles uma esteira feita
de canas aparadas, da compridão do barco, tão bem tecida e forte que não há água
de mar que consiga atravessá-la, e os tripulantes e passageiros andam sobre ela
sem fazerem dano aos repartimentos e fazenda armazenada. Há, ainda, uma área da
esteira reservada aos cavalos, a mercadoria mais apreciada nos reinos do Malabar.
O batel vai na água, à toa do zambuco, cuja âncora é feita de pau forte com pedras
nos eixos para a fazer pesada quando a querem meter ao fundo.
Após
a oração do meio-dia o tempo é de calmaria e imobiliza a naviara no meio do mar,
sem sopro de outra aragem além do bafo ofegante dos viajantes e matalotes. Isto
assi não adianta nada enfurece-se o capitão Abdeslam, nem sequer podemos arribar
a Angediva para fazer a aguada e deixar correr um pouco os cavalos. Uma balsa
carregada de madeira vem contra nós!, avisa o grumete de vigia. O capitão e o mestre
acodem à amurada e muitos viajantes fazem o mesmo, curiosos da novidade. A jangada
é formada por oito barcos de remo, de um modelo que Pêro nunca vira, pegados uns
aos outros e cobertos de rama. Traz pouca gente à vista, cerca de meia dúzia de
remadores vestidos somente com um pano muito apertado e umas pontas compridas
abaixo do umbigo e em redor das coxas. A balsa guina em direcção à nau e o escudeiro
apercebe-se de que só o barco do lado de fora traz rama, folha seca e palha, os
restantes têm taipais na proa e na popa. Cuidado, meu capitão, é uma cilada!, brada,
sacando a sua espada de duas mãos de um saco onde, para não causar estranheza,
guarda as armas de guerreiro pouco adequadas ao seu disfarce de mercador. Ás armas!,
grita Abdeslam. Corsários! Às armas!» In Deana Barroqueiro, O Espião
de D. João II, na Demanda dos Segredos do Oriente e do Misterioso Reino do
Preste João, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-8092-58-8, Casa das Letras,
2015, ISBN 978-989-741-234-9.
Cortesia
de Ésquilo/JDACT