segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

O Espião de João II de Portugal. Deana Barroqueiro. «Estroncado e com poucos liames, tem o tabuado do casco todo muito junto, cosido com fio de cairo, tão fortemente como se usasse pregadura, tudo ensebado para tornar a embarcação estanque»

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«(…) E é preciso não esquecer Honor, o lugar de refúgio de Timoja, lembra Schaban, a espicaçar o pai, que não lhe responde. Não queres contar-nos, agora, essa história dos beduínos do deserto? Alguns viajantes aproximam-se e sentam-se junto deles para ouvirem a narrativa, e o escudeiro conta o combate do Poço de Moisés com assaz de floreados e gestos, pondo em valor à coragem e ousadia dos Guerreiros Azuis. Os seus ouvintes bebem-lhe as palavras, enquanto os pajens dos mais ricos lhes preparam infusões de menta e kafé, uma bebida negra e amarga mas muito aromática. Outros fumam o kalean, um cachimbo de água com um longo tubo a terminar numa ponta de cristal, por onde chupam o fumo de uma erva seca de Xiraz, que também serve para mascar, na falta de cachimbo. Convidam-no a partilhar aqueles pequenos prazeres, enquanto narra a sua aventura, e ele, com a insaciável curiosidade de experimentar novas sensações, aceita com palavras de agradecimento o tubo de madeira de convidado, que lhe oferece o dono do kalean para substituir a sua boquilha.
Quando a maioria dos passageiros dorme, o escudeiro percorre o Babelmandel, observando tudo e tudo registando. Apesar das suas consideráveis dimensões, o zambuco só tem um mastro grande, com uma vela e um leme muito largo, feito de tábuas delgadas. Estroncado e com poucos liames, tem o tabuado do casco todo muito junto, cosido com fio de cairo, tão fortemente como se usasse pregadura, tudo ensebado para tornar a embarcação estanque. Não tem cobertura de madeira e todo o tabuado está dividido em repartimentos interiores para guardar as mercadorias, tudo coberto com olas (umas folhas de palmeira secas e entretecidas) dispostas como um telhado para a água da chuva correr pelos lados até ao costado e bomba, sem molhar a fazenda. Por cima da carga, em vez da tolda ou cobertura de madeira dos barcos do Ocidente, usam panos grossos revestidos de quil, um betume parecido com o breu, cozido com azeite de coco e de peixe, e sobre eles uma esteira feita de canas aparadas, da compridão do barco, tão bem tecida e forte que não há água de mar que consiga atravessá-la, e os tripulantes e passageiros andam sobre ela sem fazerem dano aos repartimentos e fazenda armazenada. Há, ainda, uma área da esteira reservada aos cavalos, a mercadoria mais apreciada nos reinos do Malabar. O batel vai na água, à toa do zambuco, cuja âncora é feita de pau forte com pedras nos eixos para a fazer pesada quando a querem meter ao fundo.
Após a oração do meio-dia o tempo é de calmaria e imobiliza a naviara no meio do mar, sem sopro de outra aragem além do bafo ofegante dos viajantes e matalotes. Isto assi não adianta nada enfurece-se o capitão Abdeslam, nem sequer podemos arribar a Angediva para fazer a aguada e deixar correr um pouco os cavalos. Uma balsa carregada de madeira vem contra nós!, avisa o grumete de vigia. O capitão e o mestre acodem à amurada e muitos viajantes fazem o mesmo, curiosos da novidade. A jangada é formada por oito barcos de remo, de um modelo que Pêro nunca vira, pegados uns aos outros e cobertos de rama. Traz pouca gente à vista, cerca de meia dúzia de remadores vestidos somente com um pano muito apertado e umas pontas compridas abaixo do umbigo e em redor das coxas. A balsa guina em direcção à nau e o escudeiro apercebe-se de que só o barco do lado de fora traz rama, folha seca e palha, os restantes têm taipais na proa e na popa. Cuidado, meu capitão, é uma cilada!, brada, sacando a sua espada de duas mãos de um saco onde, para não causar estranheza, guarda as armas de guerreiro pouco adequadas ao seu disfarce de mercador. Ás armas!, grita Abdeslam. Corsários! Às armas!» In Deana Barroqueiro, O Espião de D. João II, na Demanda dos Segredos do Oriente e do Misterioso Reino do Preste João, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-8092-58-8, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-234-9.

Cortesia de Ésquilo/JDACT