domingo, 28 de fevereiro de 2016

Poesias. Eu e Outras Poesias. Augusto dos Anjos. «Aí vem sujo, a coçar chagas plebeias, trazendo no deserto das ideias o desespero endémico do inferno, com a cara hirta, tatuada de fuligens…»

jdact e wikipedia

Eu. Monólogo de uma Sombra
«Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
larva de caos telúrico, procedo
da escuridão do cósmico segredo,
da substância de todas as substâncias!

A simbiose das coisas me equilibra.
em minha ignota mónada, ampla, vibra
a alma dos movimentos rotatórios...
E é de mim que decorrem, simultâneas,
a saúde das forças subterrâneas
e a morbidez dos seres ilusórios!

Pairando acima dos mundanos tectos,
não conheço o acidente da Senectus
Esta universitária sanguessuga
que produz, sem dispêndio algum de vírus,
o amarelecimento do papirus
e a miséria anatómica da ruga!

Na existência social, possuo uma arma
o metafisicismo de Abidarma,
e trago, sem bramânicas tesouras,
como um dorso de azémola passiva,
a solidariedade subjectiva
de todas as espécies sofredoras.

Como um pouco de saliva quotidiana
mostro meu nojo à Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho...
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
e o animal inferior que urra nos bosques
é com certeza meu irmão mais velho!

Tal qual quem para o próprio túmulo olha,
amarguradamente se me antolha,
à luz do americano plenilúnio,
na alma crepuscular de minha raça
como uma vocação para a Desgraça
e um tropismo ancestral para o Infortúnio.

Aí vem sujo, a coçar chagas plebeias,
trazendo no deserto das ideias
o desespero endémico do inferno,
com a cara hirta, tatuada de fuligens
esse mineiro doido das origens,
que se chama o Filósofo Moderno!

Quis compreender, quebrando estéreis normas,
a vida fenoménica das Formas,
que, iguais a fogos passageiros, luzem.
E apenas encontrou na ideia gasta,
o horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as coisas se reduzem!

E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes,
sobre a esteira sarcófaga das pestes
a mostrar, já nos últimos momentos,
como quem se submete a uma charqueada,
ao clarão tropical da luz danada,
o espólio dos seus dedos peçonhentos.
[…]



In Augusto dos Anjos, Poesias, Eu e Outras Poesias, 1912, Poeteiro Editor Digital, Iba Mendes, Projecto Livro Livre, nº 167, 2014.

Cortesia de PLLivre/JDACT