terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde. Mário de Carvalho. «O que me preocupava na altura, razão da minha convocatória a Airhan, eram os rumores de perturbações e correrias do outro lado do Estreito»

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«(…) A morte inesperada de Trifeno suscitou comentários desencontrados: uns entenderam que era vindicta divina contra os excessos de boa vida que ele ia levando; outros disseram invejá-lo, por um trespasse tão fulminante e isento de dores, nítida intervenção de Apolo. De um modo geral, todos lamentaram o desaparecimento de um magistrado que provinha de boas famílias, era risonho, dado a despesas, amigo do governador e que ninguém odiava particularmente. O decesso ocorreu durante uma leitura pública em casa de um decênviro chamado Ápito. Como era de norma, um dos duúnviros presidia. Habitualmente, calhava-me essa honra, ou, para ser mais sincero, essa mortificação. Naquele dia, porém, eu havia preferido receber um certo Airhan, recém-chegado a Tarcisis, que, muito à puridade, e com apelos de urgência, me mandara pedir alvíssaras por notícias que trazia do Sul. Repoltreou-se então Trifeno, em meu lugar, no cadeirão oficial que, sobre o estrado, era reservado ao duúnviro.
Segundo me contaram, a sessão decorreu com absoluta e morna normalidade. O primeiro orador anunciou que procederia à leitura de uma variação em torno da célebre questão que Demóstenes propusera em Atenas sobre a venda do burro ou da sombra do burro, e que tem sido glosada com minúcia por todos os jurisconsultos. Tudo se acomodou para sofrer a questão do burro, a que se seguiriam um diálogo sobre a munificência dos Césares e um poema heróico sobre a queda de Numância. Muito se bocejou e dormitou naquela audiência e, por isso, ninguém estranhou que a cabeça de Trifeno resvalasse e pendesse bandeada, mal sustida pelo espaldar da cadeira, nem que os seus pés, muito estendidos, tivessem feito derivar o tamborete para longe do assento. Só quando, horas depois, a sessão chegou ao fim e quiseram acordar Trifeno, primeiro com blandícia, após com violência, chegaram à conclusão de que a morte, como diziam, se tinha apiedado dele e o tinha poupado ao dilúvio de palavras e gestos que ali se produzira.
Ainda assim, o último orador, Proserpino, foi acusado, por uma maledicência risonha, de proferir apóstrofes mortais para ouvidos curuis e alguns jovens estroinas inventaram-lhe até uma alcunha formada com um neologismo grego que significava: o do fatídico verbo. Não me dá para sorrir quando relato estes acontecimentos, com a sua forma burlesca, nem pretendo divertir quem quer que seja. Quero apenas acentuar a despreocupação um tanto irreverente, de algum modo tola, e, em absoluto, ímpia, que então campeava em Tarcisis. Os mais notáveis nada tomavam a sério; a plebe não tomava a sério os notáveis. E nesta leviana irresponsabilidade, todos se julgavam protegidos por uma grande redoma, diáfana mas sólida, velada por benévolos deuses guardiões. A ninguém ocorria que a divindade do Imperador apenas fosse válida nos templos, que a autoridade do Senado e do Povo fosse escassamente garantida pelo acampamento da VII Legião Gémina, a novecentas milhas de distância e que, adentro das próprias muralhas, a corrupção da cizânia já lavrasse, depois que por elas entrou um certo homem de fraca aparência, mas de palavras aladas.
Foi Airhan quem me chamou a atenção para ele, de passagem, por forma vaga e como distraída: parece que anda por aí um estrangeiro, que diz ser mercador de nozes... Nome? Mílquion ou Mélquion, não sei bem... Logo mudou de assunto, sem acrescentar mais pormenores. Também não dei grande importância ao peregrino. O que me preocupava na altura, razão da minha convocatória a Airhan, eram os rumores de perturbações e correrias do outro lado do Estreito. Ao que parecia, pelas meias palavras dele, a situação aconselhava cautelas. Este Airhan era meu informador, informador dos meus antecessores, e de mais não sei quem. Nunca gostei dele, situação que lhe convinha perfeitamente, desde que o remunerasse e não caísse em curiosidades minuciosas sobre aquilo a que se pode chamar, simplificando, a sua maneira de estar na vida. Acostumado a que o detestassem, Airhan não esperava outro sentimento dos outros, ainda que fossem relativamente poderosos, como eu era então.
Cheirava asperamente a torpes couros curtidos e a ani-mais de estábulo. Mal ele entrava, a minha estância era logo impregnada daquele fedor que, persistentemente, continuava a contaminar os mais ínfimos e descomprometidos objectos, mesmo após a sua abalada. Durante muito tempo, a própria cera das tabuinhas denunciava o contacto com este homem». In Mário de Carvalho, Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, Editorial Caminho, Grande Prémio APE 1995, Prémio Fernando Namora 1996, Prémio Pégaso de Literatura 1996, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0974-X.

Cortesia de Caminho/JDACT