quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

A Oficina dos Livros Proibidos. Eduardo Roca. «O rapaz não respondeu. Os pulsos ardiam-lhe, amarrados pela corda. O rosto começou igualmente a arder-lhe. O soldado tinha-o golpeado com a luva de malha...»

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Arredores de Colónia. 1430
«Uma pequena figura observava acaçapada por entre as ramagens mais baixas de um imenso castanheiro. A densidade do bosque justificava a sua posição. De repente, a paciência compensou os seus desejos e um coelho, pardo e peludo, apareceu por trás de um grosso tronco de uma faia centenária. Mal se ergueu, esfregou o focinho com as patas dianteiras. Quando estava mais perto, lançou-se sobre ele a toda a velocidade. Um rápido movimento de punho, um estalido e a peça passou a estar pendente, inerte, no cinturão. Iniciou o caminho de regresso a casa com um alegre assobio. O pai tinha-o posto fora nessa mesma manhã chamando-lhe preguiçoso e aproveitador, mas poucas horas depois voltaria com um coelho para o jantar e ele teria de engolir as suas palavras. Despreocupado, continuou a subir a vereda sombria. O que viu quando chegou ao topo deixou-o paralisado: um destacamento de cinco guardas observava-o em silêncio. Ficou especado diante deles por uns instantes, mudo, e os soldados devolveram-lhe os olhares. Quando o pequeno soltou a correr, regressando pelo mesmo caminho montanha abaixo, começaram a persegui-lo. Koller, o mais rápido dos homens, largou o capacete e a alabarda e logo o alcançou. O soldado levantou-o em bolandas e, enquanto o rapazito esperneava no ar, esperou até que os outros chegassem. Depois, cumpriu a ordem do chefe da guarda, que mandou atá-lo a uma árvore. Casualmente, indicou o castanheiro atrás do qual o menino se escondera um momento antes. Ainda estavam frescas as marcas do pulo sobre a terra húmida. Não sabes que estas terras pertencem ao arcebispo?, gritou o oficial.
O rapaz não respondeu. Os pulsos ardiam-lhe, amarrados pela corda. O rosto começou igualmente a arder-lhe. O soldado tinha-o golpeado com a luva de malha. Agitava-a diante dele, ameaçador. Ah, não falas? Ter-te-á o gato comido a língua? Vamos já verificar. Acendam uma fogueira. Os quatro homens entreolharam-se sem compreender. Aquele furtivo era apenas um adolescente. Confirmava-o uma sombra de buço sob o nariz, acima do lábio superior. Não me ouvistes? Andai, instou o oficial. Instantes depois, a fogueira chegava sem dificuldade às ramagens da árvore. As tenras folhas do castanheiro começaram a retorcer-se sobre si próprias. O vento balançou uma delas, desprendeu-a e fê-la cair sobre o braço do menino, onde deixou o seu rasto de fogo. Uma queixa abafada saiu-lhe da boca. Hum... Quantos coelhos caçaste até hoje?, perguntou de novo o oficial. Mas ele mantinha-se em silêncio, os lábios apertados, o gesto desafiador. Não és mudo, isso é claro. E ainda assim não dizes nada. O olhar do rapaz tornou-se esquivo. Não queria falar com aqueles soldados: a peça era sua porque a havia conseguido com o seu esforço. E o bosque era de todos. Apertou mais os lábios para demonstrar a sua firmeza. Vendo esse gesto de desafio, o oficial não se conformou. Então é isso, hem? Pois agora sim, não falarás. E, brandindo o punhal, apertou com força o pescoço do menino. Bawer, Koller, ajudai-me. Os dois soldados entreolharam-se, assustados. Eram jovens e inexperientes e cumpriam a sua primeira missão extramuros. Que não se mova, ordenou a um. E, tu, prende-lhe a boca. Como se fosse um cavalo. Assim mesmo. Não tens nada para dizer?, dirigiu-se ao pequeno. É a tua última oportunidade. Qualquer um podia ver como o terror inundava os olhos do rapaz». In Eduardo Roca, A Oficina dos Livros Proibidos, O Conhecimento pode Mudar o Mundo, 2011, tradução de Óscar Mascarenhas, Marcador Editora, 2013, ISBN 978-989-754-015-8.

Cortesia de MarcadorE/JDACT