segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

O Infante Henrique. Memória Histórica. Alfredo Alves. «Pois o pae mandara ‘trigosamente’ cortar madeira para embarcações; Micer Carlos Pezagno, o almirante, teve o encargo de recrutar mareantes, e Alfonso Furtado, o capitão…»

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A Tomada de Ceuta
«(…) Nun’Alvares desceu a estreitar nos braços o antigo companheiro de armas, e divagando os dous em passeio, João I narrou ao amigo tudo o que havia acerca do designio da empreza de Ceuta. Ouvio-o o condestavel serenamente a principio, mas depois as lagrimas soltaram-se-lhe de entre as palpebras cansadas, e proferiu, tremente a voz: pois eu vos digo que esse feito foi inspirado por Deus! João I exultou com o parecer de Nun’Alvares e comoveu-se tambem. E os dous entreolhando-se, sentiram a um tempo nos corações amigos a mesma saudade pelos dias idos de gloria e ardor. Porém era necessario cuidar dos novos que tambem almejavam glorioso futuro. E o condestavel, sempre bom, sempre leal, recommendava ao rei: reuni conselho que eu serei comvosco. Separaram-se. O rei e o infante Pedro volveram a Santarem e os dous outros infantes foram para Evora, de onde haviam partido. Os infantes socegaram e razão tinham. Pois o pae mandara trigosamente cortar madeira para embarcações; Micer Carlos Pezagno, o almirante, teve o encargo de recrutar mareantes, e Alfonso Furtado, o capitão, punha a postos toda a sua gente: patrões, alcaides, arraes, pintitaes, comitres, besteiros, galeotes e marinheiros; João Alfonso Azambuja dava ordem a Ruy Peres Alandroal, thesoureiro da moeda, para que as fornalhas de fundição estivessem sempre a trabalhar, á uma; e o Gomide, escrivão da puridade, e o ajudante Caldeira iam escrevendo a todos os Anadeis para que fizessem seus alardos de besteiros e arricaveiros e mandassem relação das forças nos alcaizes, ou livros de revistas. A azafama era grande nos preparativos da expedição, da qual se ignorava o destino.
Nas margens do Tejo e do Douro, nas tercenas da Magdalena e de Villa Nova, os arcabouços das galés e naus e galeotas em construcção arqueavam-se como costellas de esqueletos monstruosos; os carpinteiros batiam a compasso os malhos; os engenhos dobadoyras aprestavam-se a lançar á agua as embarcações já promptas; estrinqueiros torciam e retorciam a cordoalha; enxerqueiras preparavam carne e pescado para as armadas; accorriam a Lisboa as mesnadas da Beira, da Extremadura e do Alemtejo, apresentando-se ao infante Pedro, que tinha a seu cargo commandal’as e fazel’as embarcar na frota que organisava; e as do Minho e Traz os-Montes eram trazidas pelo conde de Barcellos ao Porto, onde o infante Henrique, auxiliado pelo senado, dirigia os preparativos fadigosos da expedição e em cuja cidade Bento Fernandes e João Basto levantavam um grande numero de besteiros e galeotes. Toda essa decisão de trabalho fora resultado do tal conselho que Nun’Alvares induzira o rei a reunir. Tivera elle lugar em Torres Vedras.
Viera o rei João I, de Cintra, e os infantes Henrique e Pedro chegaram de Tentugal. Approximava-se o infante Henrique da villa e encontrando o pae, beijou-lhe a mão e pediu-lhe: Senhor, quando formos em nossa sagrada expedição, que seja eu o primeiro que filhe terra, vos peço. E accrescentara: quando vossa escada real for posta sobre os muros da cidade, que eu seja aquelle que va primeiro por ella, que outro algu. E o pae, rindo, retorquiu-lhe: em tempo proprio te darei resposta. E foram todos ao conselho: rei, infantes, Nun’Alvares e os maioraes da corte. O condestavel dissera a João I que apresentasse o negocio como feito já determinado, e socegava-o: fallai assim que eu serei comvosco. E todos, crentes, ouviram, em antes da reuniao, missa do Espirito Santo. Depois o rei fallou, fallou, allegando não querer guerrear christãos e só almejar combater os infieis, em gracas a Jesus Senhor Nosso. Ouviam todos, silenciosos. O rei, afinal, pediu conselho. O infante Duarte devia ser o primeiro a fallar; desistiu comtudo em favor do condestavel, como se combinara. E este com o seu aspecto patriarchal, grave, sereno, como uma visão do passado, alii mostrou na sua phrase suasoria toda a importancia e justica da empreza. E terminando ajoelhara-se aos pes do rei, oferecendo-lhe mais uma vez a sua espada gloriosa de cavalleiro. Todos se electrisaram ao ouvirem o condestavel; alii haviam estado os bons veteranos de Valverde e Aljubarrota, escutando a voz do cavalleiro-modelo, attentos, mas aquellas phrases suggestionadoras de impetos bellicosos, João Gomes Silva, um dos antigos, enthusiasmado, encarou os companheiros das lides passadas, em todos elles já as cans se destacavam, e gritou-lhes: russos, além! Além, assim seja, apoiaram os outros. Os velhos de Aljubarrota, os de cabellos brancos, os russos tinham de ir levar os rapazes á conquista da gloria, pois não! Além! Além!, clamavam todos, abraçando-se». In Alfredo Alves, D. Henrique o Infante, Galant de bien ferre, Memória Histórica, Typografia do Commercio do Porto, G 286, H5A53, Porto, 1894.

Cortesia de TCommercioPorto/1894/JDACT