quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Metamorfoses da cidade medieval. A coexistência entre a comunidade judaica e a catedral de Viseu. Anísio Sousa Saraiva. «No início da segunda metade de Duzentos, Portugal terminava a sua participação no processo de Reconquista do território peninsular»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O estatuto de Viseu como centro político, eclesiástico e comercial, actuou como factor de desenvolvimento e fixação de mercadores e judeus. Datam dos finais de Duzentos os primeiros testemunhos da presença hebraica nesta cidade, cuja comuna prosperou sobretudo a partir dos inícios de Quatrocentos, no momento em que Viseu deu início a um intenso processo de reconstrução, após três décadas de conflito e destruição que marcaram todo o reinado fernandino e os primeiros anos da governação de João I. Neste artigo abordamos o perfil multi-confessional de Viseu medieval e o contributo judaico na construção do espaço urbano e social da cidade, no período anterior à expulsão dos hebreus, em 1496. Analisamos os contornos deste processo de coexistência e de colaboração, por vezes pouco pacífica, entre os judeus e a catedral. Esta, como detentora de grande parte da propriedade urbana da cidade, funcionou como importante interlocutor no relacionamento dos cristãos com a minoria judia e exerceu uma forte influência nos seus mecanismos de organização espacial. Entre algumas questões analisadas neste âmbito, destacamos a deslocalização do bairro judaico, em grande medida como consequência das relações de poder e da defesa dos interesses de judeus e cristãos no contexto da reorganização da malha urbana quatrocentista de Viseu.

No início da segunda metade de Duzentos, Portugal terminava a sua participação no processo de Reconquista do território peninsular, cumprindo aquele que fora um dos seus principais desígnios durante mais de século e meio de história, desde o tempo em que apenas constituía um pequeno condado subordinado ao reino de Leão. Com efeito, depois de alcançar a independência política, ractificada por bula papal de Alexandre III, em 1179, um novo passo seria dado setenta anos depois pelo jovem reino português, ao conquistar-se definitivamente o território do Algarve, em 1249. Este acontecimento, que constituiu um importante sucesso militar face ao domínio muçulmano da Península Ibérica, permitiu ao rei Afonso III definir os contornos políticos de Portugal, aproximando-os dos limites daquela que veio a ser a sua fronteira definitiva, ao mesmo tempo que possibilitou a este monarca cimentar o equilíbrio político e socio-económico do reino, através de um poder régio actuante e centralizador e de uma geografia urbana dinâmica, embora heterogénea. Esta matização do mundo citadino português de meados do século XIII resultava, em grande medida, da existência de um eixo urbano litorâneo, paralelo à costa atlântica, formado por núcleos urbanos como Braga, Guimarães, Porto, Coimbra, Santarém e Lisboa, que no seu conjunto se contrapunha a um vasto elenco de localidades de menor expressão populacional no interior do país, entre as quais se assinalavam Bragança, Chaves, Lamego, Viseu, Guarda, Estremoz, Moura, Beja, e ainda Faro e Silves, estas duas situadas na costa sul do Algarve recém-conquistado. Não obstante as assimetrias entre o litoral e o interior e a forte matriz rural das cidades e vilas medievais portuguesas, estas constituíam espaços dinâmicos fortemente credores das concepções urbanísticas romanas e muçulmanas, que vieram a conhecer nesta fase pós-Reconquista importantes alterações morfológicas decorrentes, entre vários aspectos, do aumento da população e do consequente alargamento da malha urbana para os bairros limítrofes, então chamados de arrabaldes (esta expansão urbana para os arrabaldes já se verificava antes do fim da Reconquista em cidades mais desenvolvidas como Coimbra, Santarém ou Lisboa). Estas novas áreas, normalmente localizadas em zonas mais baixas e exteriores às cinturas amuralhadas, congregavam uma parte significativa da vida citadina, formando espaços por excelência de concentração da actividade artesanal e mercantil, com características físicas, funcionais, sociais e confessionais próprias, patentes no arruamento dos ofícios, de acordo com as suas especificidades, e na constituição de ruas ou bairros afectos a um qualquer grupo étnico ou religioso minoritário». In Anísio Sousa Saraiva, Metamorfoses da cidade medieval. A coexistência entre a comunidade judaica e a catedral de Viseu, Revista Medievalista, nº 11, 2012, Universidade de Coimbra; Centro de História da Sociedade e da Cultura; Centro de Estudos de História Religiosa, IEM, ISSN 1646-740X.

Cortesia da RMedievalista/JDACT