domingo, 28 de fevereiro de 2016

O Século Primeiro depois de Beatriz. Amin Maalouf. «… até cultivei, em pousio, duas ou três amizades. Sobretudo terá havido Clarence, e depois Beatriz; direi, que raramente suportei os zumbidos das misérias quotidianas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Existem nos mercados do Oriente favas misteriosas a que antigas supersptições dão o poder de favorecer o nascimento de crianças do sexo masculino. Quando o narrador, um entomologista francês especialista em escaravelhos, consegue encontrar algumas numa viagem ao Egipto, suspeita que o mundo chegou a uma fase crítica da história. Por toda a parte, os nascimentos de meninas se tornam raros. Qual a origem da desgraça? Alegre e sério, presta-se a mais de uma leitura. Entre elas, o amor maternal do pai pela filha e a do encontro assustador entre as perversões do arcaísmo e as da modernidade».

«É bem conhecido o fascínio exercido pelo número sete sobre o espírito do homem medieval, a ponto de a Idade Média ter celebrado o triunfo do sete. O sete é símbolo de ordem e de totalidade, síntese quase mágica de unidade e de multiplicidade…»

«Tu estás no jardim de uma estalagem de Praga
e te sentes muito feliz com uma rosa sobre a mesa
e observas em vez de escrever o teu conto em prosa
o besouro que dorme no coração da rosa» In Apollinaire

«Dos acontecimentos que relato nestas páginas não fui mais que uma testemunha entre outras, mais aproximado que a multidão de espectadores, mas tão impotente como eles. o meu nome, eu sei, foi mencionado nos livros, isso causou-me outrora um certo orgulho. Mas já não causa. A mosca da fábula podia exultar porque a carruagem chegou a bom porto; de que se teria ela vangloriado se a viagem tivesse acabado num precipício? Esse foi o meu papel, na verdade, o de um sonâmbulo supérfluo sem sorte. Pelo menos não fui nem lorpa nem cúmplice. Nunca andei atrás de aventuras, mas às vezes a aventura fez-me sair do covil. Se eu tivesse podido escolher, tê-la-ia confinado ao único universo que me apaixonou desde a infância e que, com oitenta e três anos devidamente festejados, me apaixona ainda sem descanso: os insectos, esses admiráveis liliputianos, resumos de elegância, de habilidade, de imemorial sabedoria. Tenho o hábito de esclarecer os meus interlocutores profanos de que não sou, de modo algum, um defensor dos insectos. Com os animais ditos superiores, que nós, os homens, cedo escravizamos e abundantemente massacramos, de que triunfamos de uma vez para sempre, podemos permitir-nos doravante ser magnânimos. Não com os insectos. Entre eles e nós a luta prossegue, quotidiana, implacável, e nada autoriza a predizer que o homem sairá vencedor. Os insectos estavam nesta Terra bem antes de nós, continuarão lá ainda antes de nós, e quando pudermos explorar os planetas longínquos serão mais depressa os seus congéneres do que os nossos que lá encontraremos. Com o que nos sentiremos, penso eu, reconfortados.
Já o disse, não sou um defensor dos insectos. Mas certamente um dos seus tenazes admiradores. Como não o ser? Que criatura alguma vez destilou matérias mais nobres que a seda, o mel ou o maná do Sinai? Desde sempre, o homem esforça-se por copiar destes produtos de insectos a textura e o gosto. Que dizer também do voo da mosca vulgar? Quantos séculos nos serão ainda precisos para imitá-la? Sem falar da metamorfose de uma miserável larva. Eu poderia invocar uma infinidade de exemplos. Não é esse o meu propósito. Nas páginas que vão seguir-se, não é da minha paixão pelos insectos que se trata, mas justamente dos únicos momentos da minha vida em que me interessei com prioridade pelos humanos. A ouvirem-me, tornar-me-ão facilmente por um urso misantropo. Isso não seria propriamente verdade. Os meus estudantes conservam de mim a melhor recordação; os meus colegas não disseram excessivamente mal; às vezes fui sociável, sem exagero; até cultivei, em pousio, duas ou três amizades. Sobretudo terá havido Clarence, e depois Beatriz; mas delas voltarei a falar. Digamos, para resumir sem mentir, que raramente suportei os zumbidos das misérias quotidianas, mas que aos grandes debates do meu tempo prestei constantemente um ouvido novo. Amei até ao fim o século da minha juventude, os seus entusiasmos ingénuos, os seus ingénuos terrores à aproximação do milénio, ainda e ainda o átomo, e de novo a epidemia, depois esses buracos de Dámocles por cima dos polos. Foi um grande século, a meu ver o maior, talvez o último grande, foi o século de todas as crises e de todos os problemas; hoje, no século da minha velhice, só se fala de soluções. Eu pensei sempre que o céu tinha inventado os problemas e o inferno as soluções. Os problemas empurram-nos, maltratam-nos, fazem-nos perder as estribeiras, fazem-nos sair de nós próprios. Salutar desequilíbrio, é pelos problemas que todas as espécies evoluem; é pelas soluções que elas se entorpecem e extinguem. Será por um acaso que o pior crime da nossa memória se tenha intitulado solução, e final? In Amin Maalouf, O Século Primeiro depois de Beatriz, 1992, tradução de Daniel Gonçalves, Difel (Difusão Editorial), 2008, ISBN 978-972-290-919-8.

Cortesia de Difel/JDACT