sábado, 27 de fevereiro de 2016

A Bastarda de Istambul. Elif Shafak. «… algum defeito no sistema de altifalantes das mesquitas nas proximidades. Ou então os seus ouvidos tinham-se tornado extremamente sensíveis. Vai terminar num minuto»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Pronto, pronto, disse ele, tentando consolar Zéliha enquanto vestia um par de luvas cirúrgicas. Tudo vai correr bem, não se preocupe. É apenas um sono leve. Vai dormir, sonhar, e antes de terminar o sonho nós a acordaremos e depois irá para casa. Depois disso não se lembrará de nada. Quando Zéliha chorava daquele jeito, todas as suas expressões tornavam-se visíveis e as bochechas afundavam, acentuando-lhe o traço mais vigoroso: o seu nariz! Aquele notável nariz aquilino que, como os irmãos, ela herdara do pai; diferente dos irmãos, porém, o dela tinha o dorso mais acentuado e era um pouquinho mais alongado nas bordas. O médico deu-lhe umas palmadinhas no ombro, passou-lhe um lenço de papel e depois a caixa inteira. Sempre tinha uma caixa de lenços de papel de prontidão junto à sua mesa. As companhias farmacêuticas distribuíam caixas de lenços de papel grátis. Juntamente com canetas, agendas e outras coisas que traziam gravado os seus nomes, as companhias fabricavam lenços de papel para as mulheres que não conseguiam parar de chorar. Figos… Figos deliciosos… Figos óptimos, maduros! Era o mesmo vendedor ou um outro? Como os clientes o chamariam…? Figueiro…?!, pensou Zéliha consigo mesma, deitada na mesa de uma sala perturbadoramente branca e imaculada. Nem os equipamentos nem as facas a assustavam tanto quanto aquela absoluta brancura. Havia algo na cor branca que se assemelhava ao silêncio. Ambos eram desprovidos de vida.
No seu esforço para se afastar da cor do silêncio, Zéliha distraiu-se com uma mancha preta no tecto. Quanto mais fixava o olhar, mais a mancha se parecia com uma aranha negra. Primeiro imóvel, depois começou a rastejar. A aranha tornava-se cada vez maior à medida que a injecção se espalhava pelas veias de Zéliha. Em poucos segundos estava tão pesada que não conseguia mover um dedo. Enquanto resistia a ser carregada para longe pelo sono da anestesia, começou a soluçar de novo. Tem a certeza de que é isso que quer? Talvez queira pensar mais sobre o assunto, disse o médico numa voz aveludada, como se Zéliha fosse um monte de pó e ele tivesse medo de fazê-la voar para longe com o vento de suas palavras se falasse mais alto. Se quiser reconsiderar a sua decisão, ainda há tempo. Mas não havia. Zéliha sabia que aquilo tinha de ser feito naquela hora, naquela primeira sexta-feira de Julho. Agora ou nunca.
Não há nada a reconsiderar. Não posso ter essa filha, ouviu-se dizer abruptamente. O médico fez um sinal afirmativo com a cabeça. Como se esperasse por esse gesto, a prece de sexta-feira inundou de repente a sala, vinda da mesquita próxima. Em segundos, outra mesquita juntou-se à primeira, e depois outra e mais outra. O rosto de Zéliha contorceu-se, desconfortável. Detestava quando uma prece destinada originalmente a ser emitida pela pureza da voz humana era desumanizada numa voz eléctrica, estrondeando pela cidade, produzida por microfones e altifalantes. Logo o clamor era tão ensurdecedor que Zéliha suspeitou haver algum defeito no sistema de altifalantes das mesquitas nas proximidades. Ou então os seus ouvidos tinham-se tornado extremamente sensíveis. Vai terminar num minuto… Não se preocupe. Era o médico falando. Zéliha olhou-o interrogativamente. O desprezo pela electro-prece era tão óbvio no rosto dela? Não que se importasse. Entre todas as mulheres Kazanci, Zéliha era a única declaradamente não-religiosa. Quando criança, agradava-lhe imaginar Alá como o seu melhor amigo, o que não era coisa ruim, claro, excepto porque a sua outra melhor amiga ser uma garota sardenta, loquaz, que passara a fumar aos oito anos. A garota era filha da faxineira da família, uma curda gorducha cujo bigode nem sempre se preocupava em depilar. Naquela época, a faxineira ia à casa de Zéliha duas vezes por semana, levando sempre a filha. Depois de um tempo, Zéliha e a garota tornaram-se boas amigas, chegando até a cortar seus respectivos dedos indicadores para misturarem o sangue e serem irmãs de sangue para sempre. Por uma ou duas semanas, as garotas andaram com curativos ensanguentados amarrados nos dedos como um sinal de sua irmandade. Naqueles tempos, sempre que Zéliha rezava, pensava nessas palhaçadas, se pelo menos Alá também se pudesse tornar uma irmã de sangue…, sua irmã de sangue…» In Elif Shafak, De Volta a Istambul, A Bastarda de Istambul, 2007, Editora Nova Fronteira, tradução de Myriam Campelo, ISBN 978-85-209-1996-5, Jacarandá Editora, 2015, ISBN 978-989-875-237-6.

Cortesia de EBF/JEditora/JDACT