sábado, 13 de fevereiro de 2016

Metamorfoses da cidade medieval. A coexistência entre a comunidade judaica e a catedral de Viseu. Anísio Sousa Saraiva. «Situa-se em pleno reinado dionisino e a poucos anos do final do século XIII, mais concretamente em 1284, a primeira referência a um judeu habitante de Viseu…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A história da comuna judaica viseense inicia-se, portanto, nos finais do século XIII e, tal como sucede com a esmagadora maioria das localidades portuguesas, o seu estudo depende exclusivamente das informações constantes nas fontes cristãs, uma vez que desta comunidade não chegaram quaisquer testemunhos escritos a respeito da sua constituição ou do seu funcionamento. A imagem que hoje podemos construir dos judeus de Viseu é, assim, limitada ao resultado de uma leitura realizada de fora para dentro, ou seja, a partir do exterior deste grupo e circunscrita aos registos que a maioria cristã deixou nos seus centros de produção documental. No caso particular de Viseu, a base para o estudo da comuna hebraica encontra-se na chancelaria régia, mormente no que diz respeito à centúria de Quatrocentos, e, sobretudo, no rico repositório informativo do cartório do cabido da Sé viseense, de onde provém a esmagadora maioria das fontes para a história da presença judaica na cidade, agora por nós elencada e que compreende uma cronologia que se estende dos finais do século XIII até aos inícios do século XVI (neste cartório capitular reunimos um total de 80 documentos que testemunham, directa ou indirectamente, a presença judaica em Viseu, 80% dos quais são referentes ao século XV e correspondem na sua maioria a contratos de emprazamento ou de escambo de propriedades do cabido; a esta documentação proveniente da Sé acresce a massa informativa reunida nas chancelarias régias e que não ultrapassa a meia centena de documentos, datados sobretudo do reinado de Afonso V). É especialmente através dos documentos produzidos ou recolhidos pelo cabido da catedral que se torna possível perscrutar as características e as linhas de inserção da minoria hebraica, numa leitura que se entrecruza, inevitavelmente, com a vida económica desta instituição eclesiástica, a mais importante de Viseu e de toda a região da Beira. A Sé, na condição de detentora de grande parte da propriedade urbana e peri-urbana da cidade, funcionou como um dos principais interlocutores no relacionamento entre judeus e cristãos, e exerceu uma forte influência nos mecanismos de organização sócio-espacial daquela minoria, o que desde logo se pode compreender se tivermos em conta o facto do cabido ser o proprietário de muitas das casas e dos bens habitados e emprazados por judeus.
Cientes desta estreita ligação estabelecida entre o cabido da catedral e a comuna, examinemos então com mais pormenor as fontes e analisemos o que elas nos têm a dizer. Situa-se em pleno reinado dionisino e a poucos anos do final do século XIII, mais concretamente em 1284, a primeira referência a um judeu habitante de Viseu, de nome Abraão e antigo proprietário de casas no Soar, que em 1293 foi indiciado pela justiça do rei, acusado de cobrar mais do dobro do montante de um empréstimo que concedera a um cristão da cidade (a queixa partiu de Mem Lourenço e da sua mulher que acusaram Abraão, judeu de Viseu, de lhes levar gram peça, ou seja, mais que o dobro da dívida que a ele haviam contraído; o rei determinou que, caso se provasse a acusação, o judeu fosse obrigado a devolver aos credores a quantia que havia levado a mais; 1293, 4 de Junho, Lisboa; o problema da usura foi motivo de intensa legislação desde o reinado de Afonso III, visando combater os empréstimos concedidos por judeus a juro imoderado). Abraão residia com sua mulher Donti Dona numas casas em Cimo de Vila, na entrada sul do arrabalde de Viseu, junto das quais o casal possuía uma outra habitação com sobrado, que optou por alienar a um cónego da Sé, em Março de 1305 (foi acordado com o comprador, o cónego Martim Peres, a condição de poder ter serventia da sua nova casa através das habitações dos vendedores judeus seus vizinhos; estas casas compradas pelo cónego são, dois anos depois, por si doadas a Clara Eanes, registando-se o facto do judeu Abraão e da sua mulher delas ainda serem vizinhos). Como testemunha do contrato de compra e venda deste imóvel aparece um outro judeu, chamado Bento, que, por certo, e juntamente com a família de Abraão, terá convivido com Abricio, também membro da comunidade judaica e morador, pelo ano de 1303, junto ao terreiro da ermida de S. Domingos. Mostram-nos estas referências, apesar de esparsas, alguns dos nomes dos primeiros hebreus de Viseu que, na transição do século XIII para o XIV, se fixaram no arrabalde da cidade, mais concretamente junto a Cimo de Vila e a S. Domingos, habitando um espaço urbano também ocupado pela população cristã e situado numa zona privilegiada de acesso ao eixo viário que fazia a ligação a sul, em direcção a Coimbra. Infelizmente, nada mais se conhece desta primeira comunidade hebraica, tão pouco o documento régio que eventualmente terá sancionado a sua formação (competia ao rei conceder, através de uma carta de privilégios, autorização para a criação das comunas judaicas e regulamentar todos os seus usos e costumes, foros e privilégios). Os registos documentais do século XIV mostram-se parcos em informações sobre este grupo, revelando-nos apenas sinais de aproximação à maioria religiosa, de que são exemplos o caso de um judeu convertido ao cristianismo (trata-se de Martim Afonso, que foi judeu, 1319) e alguns indícios de agitação entre os cristãos e esta minoria semita, ocorrida durante o reinado de Afonso IV. Referimo-nos a queixas que os oficiais do concelho fizeram chegar ao monarca reclamando da conduta do corregedor quando estanciava em Viseu, por frequentemente tomar para si e para a aposentadoria dos seus homens roupas e camas aos vizinhos cristãos, em vez de o fazer aos vizinhos judeus, como, aliás, mandava o costume antigo da cidade (queixa atendida pelo rei que ordenou o respeito pelo costume de tomar roupa aos judeus e não aos cristãos da cidade, 1338, 21 de Maio, Coimbra); nesta mesma carta de Afonso IV é-nos dado a saber que os arrabis da comuna de Viseu não têm jurisdição sobre os feitos crimes praticados pelos judeus, a qual pertencia aos juízes do concelho)». In Anísio Sousa Saraiva, Metamorfoses da cidade medieval. A coexistência entre a comunidade judaica e a catedral de Viseu, Revista Medievalista, nº 11, 2012, Universidade de Coimbra; Centro de História da Sociedade e da Cultura; Centro de Estudos de História Religiosa, IEM, ISSN 1646-740X.

Cortesia da RMedievalista/JDACT