domingo, 14 de fevereiro de 2016

Madre Paula. Patrícia Muller. «Três décadas de monja, recolhida no mosteiro de Odivelas desde que me lembro. A memória já não é certa mas basta fechar os olhos, como no jogo com a minha irmã…»

jdact

Mulher de Deus. Amante do rei
«Sei o que me chamam pelas costas: rameira.
Como se os pecados deles fossem diferentes do meu. O meu pecado? Traí Deus com um homem. Um rei. Tivemos um filho, prova viva da minha culpa. Não choro, não me arrependo. Que falem, experimentem viver atrás de grades, reclusos num palácio de ouro. Nascessem pobres, mal tendo o que comer, chegassem a amar a ponto de não poderem saber se estão vivos ou mortos. Saberiam o que é caminhar nos meus sapatos e poderiam ensaiar todos os julgamentos do mundo. Iam dar-se mal. Se o Senhor me perdoou, também eu me perdoei. Eu e a minha irmã Maria da Luz Micaela tínhamos um jogo quando éramos novas. Fechávamos os olhos para deixar a imaginação à solta. Eu vivia num pais estrangeiro. Eu desposava um conde. Eu costurava a manhã, pintava à tarde, cantava à noite. Eu passava os dias a passear no mato. Às vezes, também ia ver o mar. Fazíamos isto quando os dias custavam a passar, quando os olhares e as línguas afiadas dos outros nos chegavam aos ouvidos. Quando o coração se engasgava na garganta. Três décadas de monja, recolhida no mosteiro de Odivelas desde que me lembro. A memória já não é certa mas basta fechar os olhos, como no jogo com a minha irmã, e recordo-lhe a boca cheia e vermelha, os olhos escuros como o diabo, que me viam à transparência, a força com que me apertava o peito e dizia: amor.
Crescia dentro dos calções, instruía a minha mão a percorrê-lo do peito à virilha, a minha boca a segredá-lo da nuca ao queixo, mandão, arrogante, usava as partes do meu corpo como extensões do dele, e eu uma marioneta puxada por fios. Com os anos, a marioneta foi ganhando vida. Conquistou o público e substituiu el-rei, o mestre que a fazia abrir e fechar a boca para falar, abrir e fechar as pernas para dar prazer. Amor. E eu sabia que era verdade o que sentia e dizia, mas que a verdade vale no fim muito pouco. O amor não serve se não pode ser vivido por inteiro. E a minha história com João Francisco António José Bento Bernardo de Bragança, o Magnânimo, o Rei-Sol, o meu sol, é uma história incompleta. Interrompida pelo destino divino e pela história de um país. Quando morrer, o nome de João será o meu último sopro de respiração. O meu nome? Paula Tereza da Silva, madre Paula há tanto, rameira do rei há muito, filha de Deus desde sempre. Quarenta e nove anos, começo e escrever a minha história no dia em que o rei morre. Morreu há tanto tempo para ti, Paula, diz-me a minha irmã, enquanto me estende uma bebida quente, massaja o pescoço tenso e obriga a ficar deitada. Nada mais me resta a não ser a memória. Tive tudo o que uma mulher pode desejar: dinheiro, conforto, protecção, amor. Uma plebeia tratada como uma princesa. Tive os destinos de uma nação entre lençóis. Apaixonei-me pelo poder e amei o homem por trás dele.

O amor proibido entre João V e a freira do mosteiro de Odivelas
E, quanto ao teu nascimento, no dia em que nasceste não te foi cortado o umbigo, nem foste lavada com água para te limpar; nem tampouco foste esfregada com sal, nem envolta em faixas. Nasci pobre. O bisavô era alemão. Chegou da terra natal com uma medalha ao peito pelos serviços prestados na guarda estrangeira do imperador Carlos V Não sei porquê, ninguém me explicou, mas fixou-se e à sua zanga em Portugal. Quando morreu, já muito velho, eu tinha seis anos. No dia do enterro, a caminho da igreja, o pai declarou que eu herdara dele o feitio explosivo. Disse-o com ternura, tocou-me o orgulho. Foi a partir desse momento que decidi agarrar-me ao meu temperamento. Era a herança de um homem muito corajoso. E eu iria ser tão corajosa como ele. O bisavô João Paulo admirava muito o retrato do seu amado soberano na parede da sala de jantar e um livro onde estava escrito que Carlos V era dado a ataques de melancolia e que, já perto da morre, decidiu retirar-se para um mosteiro para a receber em pez. O meu avô imitou-o. Morreu sozinho em casa, deitado sobre a lareira ainda fumegante, barriga para cima, pernas dobradas, braços envolvendo as pernas, sem uma queimadura. Estava nu. Parecia um recém-nascido num berço de acendalhas. Um mistério. O pai obrigou-me a jurar: nem tu nem as tuas irmãs podem perder o juízo, Não temos dinheiro para vos caçar esses males. Comportem-se e não me amarrem a grandes gastos». In Patrícia Muller, Madre Paula, Edições ASA II, 2014, ISBN 978-989-232-783-9.

Cortesia de ASA/JDACT