quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

A Misteriosa Chama da Rainha Loana. Umberto Eco. «Tinha a impressão de divisar luzes azuis. Apresenta assimetria dos diâmetros pupilares. Tinha fragmentos de pensamentos, decerto estava acordando, mas não podia mover-me»

Cortesia de wikipedia e jdact

O mais cruel dos meses
«E o senhor, como se chama? Espere, está na ponta da língua. Tudo começou assim. Era como se acordasse de um longo sono, e, no entanto, ainda estava suspenso numa cinza leitosa. Ou quem sabe não estava acordado, mas sonhando. Era um estranho sonho, desprovido de imagens, povoado por sons. Como se não visse, mas ouvisse vozes que me contavam o que devia ver. E contavam que eu ainda não via nada, excepto um fumegar ao longo dos canais, onde a paisagem se dissolvia. Bruges, disse a mim mesmo, estava em Bruges, já estivera em Bruges, a morta? Onde a névoa flutua entre as torres como o incenso que sonha? Uma cidade cinzenta, triste como uma tumba florida de crisântemos onde a bruma pende desbeiçada das fachadas como um arrás... Minha alma limpava os vidros do bonde para afogar-se na névoa móvel dos sinais. Névoa, minha incontaminada irmã... Uma névoa espessa, opaca, que embrulhava os rumores, e fazia surgirem fantasmas sem forma... Por fim chegava a um despenhadeiro enorme e via uma figura altíssima, envolta num sudário, o rosto de um condor imaculado de neve. Eu chamo-me Arthur Gordon Pym. Mastigava a névoa. Os fantasmas passavam, tocavam-me, desvaneciam-se. As luzinhas ao longe luziam como fogos fátuos num campo-santo... Alguém caminha a meu lado sem rumor, como se tivesse os pés descalços, caminha sem saltos, sem sapatos, sem sandálias, uma faixa de névoa desliza-me sobre a face, uma frota de bêbados grita lá em baixo, no fundo da balsa. A balsa? Não sou eu quem diz, são as vozes. A névoa chega sobre pequenas patas de gato... Era uma névoa que parecia que tinham sumido com o mundo. Entretanto de vez em quando era como se abrisse os olhos, e visse relâmpagos. Ouvia as vozes: não é um coma propriamente dito, senhora... Não, não pense num eletroencefalograma plano, por caridade... Existe reactividade... Alguém me projectava uma luz nos olhos, mas depois da luz era de novo o escuro. Sentia a picada de uma agulha, de alguma parte. Viu, tem mobilidade... Maigret mergulha numa névoa tão densa que não consegue ver nem onde põe os pés... A névoa pulula de formas humanas, fervilha de uma vida intensa e misteriosa. Maigret? Elementar, meu caro Watson, são dez negrinhos, é na névoa que desaparece o cão dos Baskerville. A cortina de vapor cinza gradualmente perdia o seu matiz cinzento, o calor da água era extremo, e sua nuança leitosa mais intensa que nunca... Então nos precipitámos nos abraços da catarata onde um abismo se abriu para nos engolir. Ouvia gente que falava ao meu redor, queria gritar e avisá-los de que estava ali. Havia um zumbido contínuo, como se fosse devorado por máquinas singulares de dentes pontiagudos. Estava na colónia penal. Sentia um peso sobre a cabeça, como se me tivessem enfiado a máscara de ferro. Tinha a impressão de divisar luzes azuis. Apresenta assimetria dos diâmetros pupilares. Tinha fragmentos de pensamentos, decerto estava acordando, mas não podia mover-me. Se pelo menos conseguisse ficar acordado. Dormi de novo? Horas, dias, séculos?
A névoa retorna, as vozes na névoa, as vozes sobre a névoa. Seltsam, im Nebel zu wandern! Que língua é? Parecia que nadava no mar, sentia-me próximo à praia mas não conseguia chegar lá. Ninguém me via e a maré me levava embora. Por favor digam-me alguma coisa, por favor toquem-me. Senti uma mão na testa. Que alívio. Uma outra voz: senhora, temos histórias de pacientes que despertam de repente e vão embora com as próprias pernas. Alguém me incomodava com uma luz intermitente, com a vibração de um diapasão, era como se me tivessem posto um vidro de mostarda debaixo do nariz, depois um dente de alho. A terra tem um cheiro de cogumelos. Outras vozes, mas essas de dentro: longos lamentos de locomotiva a vapor, padres na neblina informe encaminhando-se em fila para São Miguel no Bosque. O céu é de cinzas. Névoa rio acima, névoa rio abaixo, névoa que morde as mãos da pequena vendedora de fósforos. Os passantes nas pontes da Ilha dos Cães olham um ínfimo céu enevoado, envoltos eles mesmos na névoa como em um balão suspenso sob uma névoa morena, que nem morte muita poderia desfazer. Cheiro de estação e de fuligem. Uma outra luz, mais leve. Parece que ouço, através da névoa, o som das gaitas escocesas que se renova no brejo. Outro longo sono, talvez. Depois uma clareada, pareço estar num copo de água e anis...» In Umberto Eco, A Misteriosa Chama da Rainha Loana, tradução de Eliana Aguiar, 2004, Editora Record, 2005, ISBN 978-850-107-143-9.

Cortesia de Difel/ERecord/JDACT