segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Olga. Fernando Morais. «A esta circunstância somava-se outro obstáculo: se estivesse viva, Olga teria hoje 77 anos, e como sua militância política deu-se muito precocemente…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«A reportagem que vai ler relata factos que aconteceram exactamente como estão descritos neste livro; a vida de Olga Benario Prestes, uma história que me fascina e atormenta desde a adolescência, quando ouvia o meu pai referir-se a Fílinto Muller como o homem que tinha dado a Hitler, de presente, a mulher de Luís Carlos Prestes, uma judia comunista que estava grávida de sete meses. Perseguido por essa imagem, decidi que algum dia escreveria sobre Olga, projecto que guardei com avareza durante os anos negros do terrorismo de estado no Brasil, quando seria inimaginável que uma história como esta passasse incólume pela censura. Logo que iniciei a investigação para escrever este livro, há quase três anos, percebi que as dificuldades para recompor o retrato de Olga seriam muito maiores do que supunha. No Brasil não havia praticamente nada sobre a personagem, e surpreendi-me a descobrir que até mesmo a historiografia oficial do movimento operário brasileiro, produzida por partidos ou investigadores marxistas, relegara invariavelmente a ela o papel subalterno de mulher de Prestes, e nada mais do que isto. Em tudo o que pude ler não encontrei mais do que alguns parágrafos vagos e superficiais. A esta circunstância somava-se outro obstáculo: se estivesse viva, Olga teria hoje 77 anos, e como sua militância política deu-se muito precocemente, a maioria das personagens que conviveram com ela estavam mortos. Os poucos sobreviventes que testemunharam a sua saga, na Alemanha ou no Brasil, eram, no mínimo, octogenários, nem todos com memória ou condições de saúde para desenterrar detalhes de episódios acontecidos há pelo menos meio século.
A minha primeira e óbvia investida foi sobre Luís Carlos Prestes. As tardes de sábado que lhe roubei no Rio de Janeiro produziram páginas e páginas de preciosas informações, muitas delas inéditas. E ao lutar para romper a barreira que ele se impunha para evitar falar de questões pessoais, muitas vezes me comovi ao perceber que o rígido comunista que transmitia a imagem de um homem de aço não escondia a sua emoção ao revelar minúcias da personalidade da sua falecida mulher ou rememorar passagens da curta e emocionante vida em comum que tiveram. Dono de memória prodigiosa, Prestes foi capaz de reviver com precisão a hora de um embarque ou as exactas palavras de um diálogo ocorrido há cinquenta anos. Foram poucos os casos de informações dadas por ele que, compulsadas com processos e documentos oficiais da época, resultaram incorrectas. Dos testemunhos gravados dos seus depoimentos surgiram novos factos e personagens da revolta comunista de 1935, em cuja busca parti em seguida.
Simultaneamente o jovem advogado e bibliófilo António Sérgio Ribeiro (um dos maiores estudiosos de Carmem Miranda no nosso país) vasculhava colecções de jornais e revistas da época. O passo seguinte envolveu uma viagem à República Democrática Alemã, onde, ao contrário do que ocorrera no Brasil, localizei um verdadeiro tesouro. Heroína nacional cujo nome baptiza dezenas de escolas e fábricas, Olga teve a sua memória carinhosamente preservada pelos comunistas da sua terra. Nos arquivos do Instituto de Marxismo-Leninismo, no Comité de Resistentes Antifascistas ou nos pequenos museus montados no campo de concentração de Ravensbruck e no campo de extermínio de Bernburg (ambos preservados tais como foram encontrados pelas tropas aliadas), obtive cópias de todos os documentos e fotografias referentes a Olga Benario. Com a preciosa ajuda de Alexandre Fischer e Katharina Schneider, intérpretes destacados pelo governo da RDA para auxiliar-me na pesquisa, não só seleccionei e reproduzi todo o material disponível, como entrevistei creio que todos os velhos militantes que tinham convivido com Olga na Juventude Comunista, nos anos 20 e, uma década depois, nas prisões e campos de concentração nazistas. Não me esquecerei jamais das lágrimas que a entrevista arrancou nos olhos de Gabor Lewin, já velhinho, em cuja casa esvaziamos juntos, a dez graus abaixo de zero, uma garrafa de conhaque francês. Quando perguntei se se confirmava a lenda de que Olga despertava paixões fulminantes nos seus companheiros da Juventude Comunista, Lewin pôs-se a chorar. Foi Herta, sua mulher velhinha como ele, quem desfez o meu desconforto ao dizer, sorridente: Olga foi a grande paixão da vida do Gabor». In Fernando Morais, Olga, 1985, Editora Ómega, 1993/1994, Companhia das Letras, 1985/1999, epub, 2014, ISBN 978-857-164-250-8.

Cortesia de CdasLetras/JDACT