sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

A Empresa das Índias Erik Orsenna. «Faltam-me sábios. Ter-me-iam explicado este fenómeno. Talvez um arrastar das horas ligado à distância a que estamos, à nossa localização nas fronteiras do poente»

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Ilha de Hispañola. Cidade de S. Domingos. Palácio do vice-rei das Índias. Natal de 1511
«Não estava previsto eu contar. Na nossa família, é o irmão mais velho quem sonha. E este sonho é sagrado. A bem ou à força, Cristóvão recrutou-nos a todos. A cada um de nós atribuiu um papel. O meu era ajudá-lo, noite e dia. E calar a boca. Nunca tive a ideia de protestar. De que serve rejeitar a lei quando a lei é o nosso íntimo? Desta aquiescência houve benefícios: foi assim que o sonho se realizou.
Na recentíssima cidade de S. Domingos, o pa1ácio do Alcázar gostaria de evocar Sevilha. Mas não passa de um grosso bloco de pedra cinzenta pousado na margem do estreito rio Ozama. Entrai sem temor, a porta está aberta. Não há perigo de os guardas vos importunarem: passam quase todo o tempo a dormir e os seus roncos provam que se entregam sem reservas à nobre actividade do sono. Virai à esquerda e atravessai duas capelas, uma grande, outra pequena. Ainda à esquerda. Empurrai uma porta. Julgareis penetrar num túmulo, tão vazio está o lugar, tão desprovido de luz. São os aposentos dignos e sinistros que o vice-rei reservou para mim. O vice-rei é Diego, meu sobrinho: único filho legítimo de Cristóvão.
Muitas vezes me perguntavam: que força incompreensível vos, obriga, a vós, Bartolomeu, a ir ficando, ficando nesta ilha? Porquê escolher Hispañola para último poiso em vez de outros lugares da Terra, dotados de atractivos mais seguros, de confortos mais evidentes e sem dúvida de melhores médicos? Porque não ter preferido Lisboa, a sua querida Lisboa, ou o vale do francês Loire, incomparável de tranquilidade? Conforme os dias, escolho uma das inúmeras razões que me levam a tanto amar esta ilha: a variedade das aves, as nove cores do mar, a proximidade da montanha, a violência das tempestades, o cheiro forte das mulheres, a audácia, tanto das meninas como das flores, para se imiscuírem por toda a parte e assumirem as mais impudicas posições... Calo o principal.
Contrariando as nossas ambições de juventude, Cristóvão e eu não descobrimos, como  esta ilha, o verdadeiro Paraíso, o da Bíblia Sagrada. Mas aproximámo-nos o mais possível dele. Resta-me lucidez suficiente para saber que a escolha de Hispañola para morar não me protegerá da morte, que bem sinto aproximar-se a passos largos. Sei somente que aqui como em nenhum outro lugar poderei resistir às outras maldições da idade: a sensação de frio perpétuo apesar do calor; estas dores cruéis nas articulações, e os tormentos da memória. Em Hispañola, dir-se-ia que cada noite apaga a recordação do dia que acaba de se extinguir: cada aurora que se levanta sobre o mar ainda calmo é nova, pura, leve. Não pesa sobre ela qualquer passado, queria dizer qualquer pecado. Tal como a Terra tem os seus abismos, onde a vida não obedece às mesmas leis que à superfície, o Tempo tem os seus buracos. Faltam-me sábios. Ter-me-iam explicado este fenómeno. Talvez um arrastar das horas ligado à distância a que estamos, à nossa localização nas fronteiras do poente». In Erik Orsenna, 2010, A Empresa das Índias, tradução de Telma Costa, Teorema, 2011, ISBN 978-972-695-957-1.

Cortesia de Teorema/JDACT