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O
Verão de 1899
«(…)
Foi a minha meia-irmã casada, Zeynep, que lhe disse que o primo que ela tinha
em vista para mim não se interessava minimamente por mulheres, nem mesmo como
máquinas destinadas à procriação. Zeynep começou a inventar histórias. A sua
linguagem acabou por se deixar contaminar pela devassidão por si descrita, e a
minha mãe sentiu que os seus relatos elaborados eram impróprios para os meus
ouvidos solteiros. Pintou o meu pobre primo com cores tão sombrias e imorais
que me foi pedido que abandonasse a sala. Mais tarde, nesse mesmo dia, enquanto
me beijava e abraçava, a minha mãe lamentou-se com amargura. Zeynep
convencera-a de que o nosso pobre primo era um monstro desprovido de piedade, e
a minha mãe chorava ao pensar que poderia ter obrigado a sua única filha a
casar com um ser tão bestial e depravado, transformando-se assim no instrumento
da minha eterna infelicidade. Como seria de esperar, perdoei-lhe e depois conversámos
e rimos acerca daquilo que poderia ter acontecido. Não estou certa de que ela
tenha alguma vez descoberto que Zeynep inventou tudo. Quando o meu muito
vilipendiado primo adoeceu no decorrer de uma epidemia de tifo, vindo a morrer passado
pouco tempo, Zeynep achou melhor que a verdade permanecesse oculta aos olhos da
minha mãe. O facto traduziu-se por um resultado infeliz. Durante o funeral do
sobrinho, em Esmirna, e para grande consternação do meu tio Sifrah, a minha mãe
sentiu grande dificuldade em revelar quaisquer sinais de desgosto, e quando eu
me obriguei a chorar umas quantas lágrimas, ela brindou-me com um olhar onde a
surpresa se misturava ao choque.
Tudo
isto pertence ao passado. Para mim, a verdade mais importante é o facto de, ao
fim de nove anos de exílio, poder estar de volta. O meu pai perdoou-me por ter
fugido. Queria conhecer o meu filho. Quanto a mim, queria ver a Mulher de
Pedra. Durante a infância, tanto eu, quanto a minha irmã havíamos
descoberto esconderijos entre as grutas situadas junto de uma rocha antiga a qual
em tempos devia ter sido a estátua de uma deusa pagã. Estava situada por cima
do pomar de amendoeiras situado atrás da nossa casa e, quando vista à distância
assemelhava-se bastante a uma mulher. Dominava a pequena colina onde se erguia,
rodeada de ruínas e pedras. Não era nem Afrodite nem Atena. A elas nós reconhecíamos.
Esta apresentava vestígios de um véu misterioso, o qual apenas se tornava
visível quando o Sol se punha. O rosto estava oculto. Talvez, dizia Zeynep, se
tratasse de uma qualquer deusa local há muito caída no esquecimento. Talvez o
escultor estivesse com pressa. Talvez os cristãos estivessem a caminho e as circunstâncias
o obrigassem a mudar de ideias. Talvez não se tratasse de nenhuma deusa, mas
sim da primeira imagem esculpida de Mariam, a mãe de Jesus. Nunca conseguimos atribuir-lhe
uma identidade e, assim, ela tornou-se a Mulher de Pedra. Enquanto fomos crianças,
fizemos dela a nossa confidente, colocando-lhe perguntas íntimas e imaginando
quais seriam as suas respostas.
Certo
dia descobrimos que as nossas mães, tias e criadas faziam o mesmo. Passámos a
esconder-nos atrás das rochas para escutarmos as suas histórias de tristeza e
de dor. Esta era a única forma de sabermos o que se estava realmente a passar
dentro da casa grande. Assim, a Mulher de Pedra transformou-se no repositório
de todas as nossas dores ocultas. Os segredos são coisas terríveis. Mesmo
quando necessários, acabam sempre por corroer as nossas almas. É sempre melhor
ser-se franco, e a Mulher de Pedra proporcionava a todas as mulheres desta casa
a possibilidade de desabafarem os respectivos segredos, dando-lhes a hipótese
de terem uma vida interior saudável. Mãe, sussurrou Orhan à medida que me
apertava o braço com força, será que o avô alguma vez me vai dizer qual o
motivo que levou à construção deste palácio?» In Tariq Ali, A Mulher de Pedra,
2000, tradução de Lucília Rodrigues, Publicações Europa América, Contemporânea,
2002/2003, ISBN 972-105-125-X.
Cortesia
de PEAmérica/JDACT