quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Justine. Quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell. «Ela foi má de muitas maneiras, é bem certo, mas isso não tinha importância. Nem sequer posso, também, afirmar que ela não fez mal a ninguém. Mas mesmo aqueles a quem ela feriu…»

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«(…) Sei bem que o mundo ignora esta espécie de paradoxo e não está habituado a ele; mas Nessim conhecia-a e aceitava-a de um modo que é absolutamente incompreensível para aqueles que não conseguem separar o amor dos ideais corruptos da propriedade privada. Um dia, muito mais tarde, ele disse-me: que podia eu fazer? Justine era demasiado forte para mim, sob muitos aspectos. Não podia fazer nada senão amá-la, a despeito de tudo, era o meu único trunfo. Antecipava-me, adivinhando todos os seus erros; ela encontrava-me sempre junto de si, pronto a ajudá-la quando caía, como para lhe demonstrar que nada disso tinha importância. No final das contas, ela só comprometia a parte mais insignificante da minha pessoa: a minha reputação. Mas isto ocorreu muito mais tarde: só nos conhecemos bastante bem para podermos falar assim livremente quando o destino infeliz nos devorou a todos. Lembro-me também de ele me ter dito certo dia, foi na vila de Verão, perto de Bourg El Arab: talvez o surpreenda se lhe disser que sempre pensei que em Justine havia uma espécie de grandeza. Há certas espécies de grandeza, sabe, que se não se aliam à arte ou à religião, fazem destroços na vida ordinária. É pena que ela tenha aplicado os seus dons somente nos domínios do amor. Ela foi má de muitas maneiras, é bem certo, mas isso não tinha importância. Nem sequer posso, também, afirmar que ela não fez mal a ninguém. Mas mesmo aqueles a quem ela feriu saíram enriquecidos da experiência. Ela arrancava as pessoas dos seus velhos invólucros, obrigava-as a sair de si próprias. É natural que isso seja doloroso, e muitos se equivocaram sobre a natureza da dor que ela lhes infligia. Mas eu, não! E sorrindo aquele seu bem conhecido sorriso, onde a doçura se casava com uma inexprimível amargura, repetiu em voz baixa: mas eu, não.
Capodistria..., como situá-lo no quadro? Mais parece um duende do que um homem, podereis julgar. A cabeça chata e triangular de serpente com os dois grandes lóbulos frontais; os cabelos avançando em riste, como uma viseira. Uma língua esbranquiçada e nervosa que passa incessantemente pelos lábios secos e delgados. É incrivelmente rico e não necessita mexer uma palha para viver. Sentado o dia inteiro no terraço do Brokers Club, observa a passagem das mulheres, com o olhar inquieto do homem que baralha sem cessar um velho baralho de cartas sebosas. De tempos a tempos, tem um sobressalto, como um camaleão atirando bruscamente a língua, o que é um sinal subtil. Então, há uma silhueta que se afasta do terraço, para seguir a mulher que o seu gesto designou. Às vezes os seus agentes detêm e importunam abertamente uma mulher na rua, em seu nome, mencionando uma soma de dinheiro. Na nossa cidade, uma mulher não se considera ofendida por lhe oferecerem dinheiro. Algumas limitam-se a rir. Outras aceitam imediatamente. Mas nunca se zangam. O vício e a virtude praticam-se com a mesma naturalidade. Capodistria conserva-se distante de tudo isto, no seu fato imaculado, com um colorido lenço de seda a espreitar do bolso. Os sapatos bicudos brilham intensamente. Os amigos chamam-lhe Da Capo devido a certas proezas sexuais iguais à sua fortuna, ou à sua fealdade. Existe um obscuro parentesco entre ele e Justine. Lastimo-o, diz ela. Tem o coração empedernido e tudo quanto lhe resta são os cinco sentidos, como os fragmentos de um copo quebrado. Contudo, a monotonia de uma tal vida não parece deprimi-lo. A família é famosa pelo número de suicídios cometidos e a sua herança psicológica está carregada de doenças e perturbações mentais. Mas isso não o afecta em absoluto e ele costuma dizer, pousando um indicador demasiado longo sobre a têmpora: todos os meus antepassados tinham pancada. Meu pai também. Era um grande femeeiro. Quando já era muito velho, tinha um manequim de borracha, feito à imagem de uma mulher perfeita, em tamanho natural; no Inverno, podia encher-se de água quente. Era uma boneca extraordinariamente bela. chamava-lhe Sabina, que era o nome de sua mãe, e levava-a sempre consigo. Tinha a paixão dos paquetes, e os dois últimos anos da sua vida passou-os no mar, entre a Europa e Nova Iorque, sem descer a terra quase nunca. Sabina possuía um magnífico guarda-roupa. Era um grande espectáculo vê-los descer os dois à sala de jantar, vestidos como para uma récita de gala. o velho viajava com um criado chamado Kelly. Cada um do seu lado, pegavam em Sabina por um braço, e ela tinha o ar de uma dama de sociedade, maravilhosamente vestida e ligeiramente embriagada. Na noite em que morreu, disse a Kelly: envia um telegrama a Demétrio e diz-lhe que Sabina morreu nos meus braços, sem sofrimento. Enterraram-na em Nápoles, junto do velho. Quando acabava de contar esta história, a sua gargalhada era a coisa mais natural e sã que se possa conceber». In Lawrence Durrell, Quarteto de Alexandria, 1957, Justine, tradução de Daniel Gonçalves, 1960/1961, Publicações dom Quixote, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-205-110-1.

Cortesia de PdQuixote/JDACT