sábado, 20 de fevereiro de 2016

Judas. O Obscuro. Thomas Hardy. «Sabes o que é uma universidade, um diploma universitário? É a indispensável pedra de toque para todo o homem que quer ser bem-sucedido no ensino. Meu projecto, ou o meu sonho…»

Cortesia de wikipedia

«(…) Um romance assim, como e porque não teria sido traduzido em português até hoje? A censura e a estranheza, imediatas, exigem reflexão mais apurada. Não há dúvida que é estranho e de certo modo mesmo imperdoável que não se tenha cuidado disso quando temos visto, traduzidos da mesma língua (senão do mesmo país de origem) um sem-número de romances cujo valor literário é, no mais das vezes, perfeitamente nulo. No entanto, já não estranharemos tanto a omissão, se atentarmos nas dificuldades da tarefa. Jude the Obscure é justamente considerado uma das barreiras da língua inglesa. A riqueza do vocabulário, certas expressões locais, o aprofundado e, muitas vezes mesmo, o rendilhado das comparações, a vivacidade do diálogo, fazem com que de boa vontade se recue ante a temeridade da aventura. Não espanta, pois, que os tradutores tenham fugido tanto ao texto do romance. Embora aqui e ali nos apoiando na versão de Laparra, (agradável e fluente, porém tantas vezes inexata) preferimos guardar menos distância do texto inglês, na medida do possível, talvez um pouco em detrimento dos encantos da forma literária. Pareceu-nos que um estilo tão pessoal, aliado a um pensamento tão cioso de pequenos detalhes, merecia de nossa parte um maior espírito de fidelidade, a humanidade nos parecendo dever ser, nesses casos, a qualidade fundamental do tradutor. Sim, são numerosos os que perderam o espírito por causa de mulheres e que, por elas, se tornaram escravos. Numerosos também os que, por causa delas, pereceram, erraram ou pecaram… Homens, como quereis que as mulheres não sejam fortes, vos vendo agir assim? (Esdras)
O professor deixava a aldeia e todos pareciam sentir aquela partida. O marceneiro de Crescombe emprestou-lhe um cavalo e um pequeno carrinho de capota branca para que levasse a bagagem até a cidade para onde ia. Este veículo dava perfeitamente para as coisas do viajante, pois a escola havia sido mobiliada, em parte, pelos administradores. O único objecto atravancador que o professor possuía, fora os seus caixotes de livros, era um piano rústico, comprado num leilão, anos antes, quando lhe acometera a ideia de aprender música instrumental. Mas, o seu entusiasmo tendo diminuído, jamais adquirira a menor eficiência e, desde então, sempre que tivera de se mudar, a sua compra só lhe ocasionara aborrecimentos. O pastor tinha-se ausentado todo o dia. Não gostava de presenciar mudanças e só pretendia voltar à noite, quando, o novo professor já se tendo instalado, tudo estivesse de novo em ordem. O intendente, o ferreiro e o próprio professor estavam na sala, diante do piano, com ar profundamente perplexo. O professor lembrara que, mesmo que conseguisse fazer o instrumento entrar no carrinho, não teria uso para ele na cidade para onde ia, Christminster, pois, de início, só poderia reflectir de um alojamento provisório. Um rapaz de uns doze anos, que tinha ajudado nas arrumações, abordou o grupo de homens e, enquanto estes quebravam a cabeça para resolver a situação, arriscou, enrubescendo ao som da própria voz: minha tia tem um alpendre de guardar lenha no qual talvez possa ficar o piano até que o senhor encontre um alojamento para ele. Muito boa ideia!, disse o ferreiro. Decidiu-se então que uma comissão fosse enviada à tia do menino, uma velha da aldeia, para lhe pedir que albergasse o piano até que Phillotson o mandasse buscar. O ferreiro e o intendente partiram para verificar se o abrigo proposto era adequado. O rapaz e o professor ficaram sós. Judas, estás triste por me ir embora?, perguntou bondosamente o professor. Lágrimas subiram aos olhos do rapaz. Não tendo seguido senão as aulas da noite desde a chegada do professor, pouco ligado à sua vida, não fazia como o comum dos alunos que o olhavam sem o menor romantismo. Estes, para dizer a verdade, estavam bem longe disso, tal como certos discípulos de história, sempre pouco dispostos a prestar, a não importa que causa, a colaboração de seus entusiasmos. Desajeitadamente, o rapaz abriu o livro que tinha na mão, presente de despedida do professor, e concordou que estava triste. Também eu, disse Phillotson. Porque vai embora?, indagou o rapaz. Ah, isso é difícil de explicar. Não compreenderias as minhas razões, Judas. Ainda és muito pequeno. Eu acho que compreenderia, sim senhor. Pois bem…, mas, não vás falar nisso em parte alguma. Sabes o que é uma universidade, um diploma universitário? É a indispensável pedra de toque para todo o homem que quer ser bem-sucedido no ensino. Meu projecto, ou o meu sonho, é obter um grau numa universidade e, depois, tomar ordens. Indo viver em Christminster, ou perto de lá, estarei de certo modo em pleno quartel-general da ciência. E, se o meu projecto for realmente realizável, creio que terei mais probabilidades de vencer estando lá do que estando em qualquer outra parte. O ferreiro e o seu companheiro reapareceram. O alpendre da velha Fawley era bem seco, exactamente o que convinha, e ela parecia disposta a albergar o piano. Deixaram-no em consequência na escola até de noite, esperando encontrar, então, mais braços disponíveis para transportá-lo. E o professor lançou sobre ele um olhar de despedida.
Judas o ajudou a pôr no carrinho alguns pequenos objectos e, lá pelas nove horas, o professor, içando-se junto aos caixotes de livros e a outros impedimentos, despediu-se dos amigos. Judas, não te esquecerei, disse sorrindo, enquanto o carrinho se afastava. Sejas um bom rapaz, bom para os animais e para os pássaros, e lê tudo quanto possas. Se algum dia fores a Christminster, não deixes de me procurar. O carro partiu chiando e desapareceu pelo ângulo do presbitério». In Thomas Hardy, Jude, The Obscure, Judas, o Obscuro, 1895, tradução de Octávio Faria, Geração Editorial, Colecção Redescoberta, ePub, 1994/1995, CDD 823.

Cortesia de GeraçãoE/ePub/JDACT