quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Contos e Fantasias. Maria Amália Carvalho. «… onde a ama lhe dava as sopinhas; queria-o no berço ao adormecer; queria-o no jardim, à sombra das árvores, sobre a área finíssima, onde se rolava, vestida de rendas brancas, a rir como uma perdida. Chamaram-lhe Margarida»

Cortesia de wikipedia e jdact

Uma história verdadeira
«(…) Um dia, porém, fez-se na vida atormentada e tempestuosa do pequeno Tadeu uma claridade de luar, uma claridade opalizada e doce. Houve tréguas nos seus vários martírios, e a sua mãe, numa bela manhã de Primavera em que os pássaros cantavam ao desafio nas grandes árvores do jardim, levou-o pela mão, pé ante pé, a um quarto forrado de cetim cor-de-rosa, um quarto digno de servir de habitação à fada mais linda que uma fantasia de poeta oriental tivesse imaginado. Naquele quarto havia um ninho todo branco feito de rendas, de fitas de cetim, de penugem de pássaros, e nesse ninho dormia uma criancinha que parecia uma rosa. É a tua prima; murmurou baixinho a mãe de Tadeu, enquanto este, mudo, surpreso, extasiado, fitava os seus olhos vítreos, onde o júbilo acendia ama luz desusada, nos grandes olhos luminosos e pasmados do bebé que acordara. Oh! Como Tadeu adorava aquela criança! Como na sua vida houve de repente um ficto, uma esperança, uma luz! Sua tia, uma vez em que a bebé chorava muito nos braços da ama, dissera a Tadeu com uma voz menos glacial do que o costume: Tadeu, brinca com a prima para ver se ela se cala. E ele fizera calar a rabugenta pequerrucha. Desde esse dia soube-se que a menina tinha o insólito capricho de adorar Tadeu, de rir quando ele estava de joelhos dobrado sobre o seu berço, de chorar quando alguém o levava dali para fora. A ama tomou o costume de o chamar e de o fazer estar horas e horas a entreter a menina. Ao princípio ele fazia-lhe caretas e momices, como as que usava fazer para divertir o seu tio; depois, sem bem perceber porque, adoptou outro sistema inteiramente oposto. Percebeu que a pequenina não queria um bobo, como esse espirito embotado e pervertido que o vitimara com os seus caprichos. O que a bebé queria, na ingenuidade adorável do seu despotismo infantil, era um companheiro dos seus brinquedos, um sócio, um escravo que a adorasse. Tadeu era tudo para ela: queria-o perto da grande banheira em que tomava o seu banho de manhã; queria-o junto da pequena mesa onde a ama lhe dava as sopinhas; queria-o no berço ao adormecer; queria-o no jardim, à sombra das árvores, sobre a área finíssima, onde se rolava, vestida de rendas brancas, a rir como uma perdida. Chamaram-lhe Margarida.
Margarida quer dizer pérola, e Tadeu, que vira muitas vezes a sua tia vestida de baile, achava um nome muito bem-posto àquela criança branca, transparente, loura, idealmente graciosa. Oh! Tadeu ainda andava muita vez vestido de marujo, de granadeiro, de tirolês e de alferes, ainda o introduziam no cofre da lenha, ainda o faziam fumar um charuto depois de jantar, cheio de ânsias, de náuseas, de gritos abafados de angústia!... Mas que importava! Logo que podia escapava-se para o quarto da fada, para o estojo cor-de-rosa da sua pérola, da sua Margarida, e então eram risadas sem fim, eram corridas delirantes por sobre o tapete, era um papaguear de duas aves felizes. Margarida com a idade ia-se fazendo tirânica. Pudera! Ou ela não fosse mulher, e estremecida pelo seu humilde escravo! Mas era assim mesmo que ele a queria. Quando as mãozinhas polpudas e brancas de Margarida lhe batiam, Tadeu sentia-se feliz como um rei. Quando ela o obrigava a agachar-se no chão para lhe servir de jumento, o rapazinho tinha tentações de rinchar de prazer, fazendo o passo bem ao vivo. Porque no fim de contas, apesar de todas as suas adoráveis crueldades, Margarida gostava dele. A presença de Tadeu iluminava de risos o seu rosto oval coroado de cabelos louros anelados, o seu rosto a um tempo angélico e gaiato! Margarida não o achava feio, nem tolo, nem ridículo, nem doente. Não desprezava a fraqueza dos seus braços, nem a pobreza absoluta da sua imaginação». In Maria Amália Vaz de Carvalho, Contos Fantasias e Reflexões (da primeira mulher a ingressar na Academia das Ciências de Lisboa), 1880, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ePub, Uma História Verdadeira, Wikipedia.

Cortesia de LLIvros/JDACT