segunda-feira, 31 de março de 2014

Jazz no 31. Mundo da Música. «Os outros nunca sentem. Quem sente somos nós, sim, todos nós, até eu, que neste momento já não estou sentindo nada. Nada! Não sei... Um nada que dói...»

Múcua, fruto do embondeiro
jdact

«Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa».


«Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,
que felicidade há sempre!
Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes, porque não sou eu.
As crianças, que brincam às sacadas altas,
vivem entre vasos de flores,
sem dúvida, eternamente.
As vozes, que sobem do interior do doméstico,
cantam sempre, sem dúvida.
Sim, devem cantar.
Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.
Assim tem que ser onde tudo se ajusta,
o homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.
Que grande felicidade não ser eu!
Mas os outros não sentirão assim também?
Quais outros? Não há outros.
O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
ou, quando se abre,
é para as crianças brincarem na varanda de grades,
entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.
Os outros nunca sentem.
Quem sente somos nós,
sim, todos nós,
até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.
Nada! Não sei...
Um nada que dói...»

JDACT

Sociedade no 31. História das Nossas Avós. Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930). Cecília Barreira. «Actualmente entre nós a arte de cozinhar e comer, degrada-se, como tudo o mais, por falta de coesão nos gostos do público e por culpa dos inovadores acéfalos, para quem as coisas nacionais não valem a mais reles…»

jdact e wikipedia

«(…) E é assim que a mulher moderna, aquela que faz a verdadeira vida mundana, passa os dias, as semanas e os meses numa féerie deslumbrante de trajes onde a arte feminina e subtil da mulher traçou requintes de graça e beleza.
Mas é talvez o cabelo à garçonne que detém mais carisma, nesses anos 20. Em 1927, apesar dos cabelos à garçonne se terem implantado ainda antes dos anos 20 em França, referia-se a nova moda, como algo de profundamente revolucionário. Debatia-se, claro está, se eventualmente em Espanha ou em Portugal a moda invadia os hábitos e os costumes femininos. Negativa era a resposta da Voga.
Apesar de haver um grande número de mulheres que conduzia automóveis em Paris, (cerca de 2000 em 1927); 675 inscritas nas Faculdades de Ciências, bem como 897 em Medicina, isso não significava para o caso português qualquer analogia. No entanto, estes exemplos que a todo o momento se referiam, eram um claro incentivo a uma prática diferente por parte das nossas compatriotas.
Na culinária as influências francesas eram imensas. Fialho de Almeida em Os Gatos, em 1916, protesta: Actualmente entre nós a arte de cozinhar e comer, degrada-se, como tudo o mais, por falta de coesão nos gostos do público e por culpa dos inovadores acéfalos, para quem as coisas nacionais não valem a mais reles boutade anglo-gaulesa.
Bem se podia lamentar Fialho de Almeida das influências francesas e inglesas na cozinha e nos menus portugueses. Em 1926 na rubrica Culinária da Eva as receitas eram na base de Beignets de queijo, Biftecks au cresson e Abatises de peru de cabidela. A cozinha, como aliás tudo o mais, era francesa.
Mas havia a excepção que, sem confirmar a regra, já surgia no horizonte de influências. Referimo-nos às tendências americanas e inglesas denunciando pela primeira vez um outro tipo de atitudes que não as gaulesas
A partir de 1911 começam a surgir na revista Serões artigos sobre a educação das americanas. Nomeadamente no que respeita a coeducação, praticada nas escolas. A prática dos desportos em vários países europeus é descrita com grande sentido do pormenor em a Ilustração Portuguesa, ABC, Voga e Eva, No ABC de 1923 fala-se concretamente da Mulher Moderna como sendo uma condição adquirida pela norte-americana. Por sua vez, começam a surgir artigos sobre a alemã, a sua preparação física e apetência para o desporto.
Em 1908 a Ilustração Portuguesa já assinalava na mulher alemã uma forte inovação no que dizia respeito ao campo profissional. Eram escritoras, pintoras, escultoras, doutoras nas mais variadas áreas. A rapariga de hoje, o Backfisch, como familiarmente é designada, entrega-se às diversões do sport o que noutro tempo seria escandaloso; patina, joga o ténis, monta a cavalo, toma parte em regatas e certames de natação.
Mas o que é curioso é o modo como se refere esta alteração de hábitos nas raparigas alemãs. Era a influência norte-americana que se desenhava num-retraimento da influência francesa. Outro aspecto que se assinalava era a frequência por parte das mulheres alemãs, e aí era nítida a influência norte americana dos cafés da época. No Sul da Europa só o sector masculino se deslocava aos cafés». In Cecília Barreira, História das Nossas Avós, Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930), Edições Colibri, Colecção Sociedade & Quotidiano, 1994, ISBN 972-8047-63-0.

Cortesia de EColibri/JDACT

História no 31. A Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577). As suas Damas. Carolina Michaëlis. «Não existe quem mais lamente os desgostos da Rainha ou quem mais regozije com a sua prosperidade. As cartas d'ella proporcionam-lhe prazer tal que as agasalha no seio, as acaricia e repete sempre de novo a leitura»

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NOTA: Texto na versão original.

A Infanta D. Maria
«(…) Posteriormente aceitou a homenagem de diversos escriptores de Portugal, Hespanha e França, em latim e vernaculo. Que maravilha se ambicionava illustrar tambem sua filhinha, segundo o gosto e as exigencias da epoca, de modo que sem desdouro do nome português e castelhano, podesse luzir em qualquer throno da Europa? Que maravilha se, velando de longe pela sua felicidade, desejou vestir-lhe ricamente a alma, augurando- que no convivio com as musas encontraria uma consolação ideal ás mil decepções moraes que a vida não poupa a ninguém, nem mesmo ás princesas? Na fé de que ao cabo de breve prazo a Infanta viria, como esposa do Dauphin, residir na côrte culta e galante de Francisco I onde brilhava Margarida de Navarra, não só pediu e aconselhou, mas ordenou repetidas vezes que aprendesse o latim, e tentasse afeiçoar-se ás letras.
Assim o lemos numa carta que D. Maria escreveu á mãe, quando vencidas as longas agruras da iniciação, começava a avaliar com lucidez o serviço que lhe haviam prestado, occupando-a, interessando-a, ampliando o seu horizonte, acostumando-a a raciocinar e a trabalhar. A principio o estudo lhe fôra penoso. –Frequentemente havia desanimado, em briga com os rudimentos enfadonhos da grammatica, necque laboriosa illa grammaticae fastidia aequo animo ferre non poteram. Mas pouco a pouco, o santo desejo de saber invadiu-a. Conseguiu deleitar-se de veras no trato dos livros, realizando assim a predicção de D. Leonor quod ea res maximam olim mihi voluptatis esset allatura et ornamenti non parum. Se á mãe parecesse bem o estylo da missivazinha, a ella, só a ella, eram devidos louvores. Se, porém, descobrisse defeitos, a Infanta diligenciaria aperfeiçoar-se mais e mais no conhecimento do idioma classico. O estylo é juvenil, de graciosa simplicidade e elegancia. Tentando adivinhar aproximadamente a data de que carece na obra de onde, á falta do original, a copio, calculo, seria escripta entre 1535 e 1537, quando a Infanta contava quinze annos.
Além d'essa amostra conheço apenas mais uma da sua dicção latina, curiosa sob mais de um aspecto. É dirigida a uma soberana estrangeira, cujo perfil já desenhei: Maria Tudor, a bloody Mary, flagello da Inglaterra protestante. A filha de Henrique VIII, subindo ao throno (6 de Julho de 1553), tivera de suffocar uma revolta a favor de Jane Grey, e mandára dggolar o duque de Northumberland que a capitaneava. Felicitando a sua parenta e amiga por ter sahido incolume d'este attentado contra os seus direitos, a Infanta emprega expressões exuberantes de amizade. Não existe quem mais lamente os desgostos da Rainha ou quem mais regozije com a sua prosperidade. As cartas d'ella proporcionam-lhe prazer tal que as agasalha no seio, as acaricia e repete sempre de novo a leitura. Pede resposta rapida, pela qual anceia». In Carolina Michaelis de Vasconcelos, (1851-1925), Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) e as suas Damas, edição fac-similada, Enclave de Reabilitação Profissional da Biblioteca Nacional, Lisboa, 1994, ISBN 972-565-198-7.

Cortesia de BNacional/JDACT

Prosa no 31. O Complexo de Culpa do Ocidente. Pascal Bruckner. «Tal como há pregadores do ódio no islamismo radical, há também pregadores da humilhação nas democracias ocidentais, sobretudo entre as elites pensadoras, e o seu proselitismo não é menor»

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Os Propagandistas do Estigma
Os Flagelantes do Mundo Ocidental
«(…) Embora as neguem, os dirigentes convidam assim a Europa a pronunciar-se contra as raízes do mal: a injustiça, o ressentimento e a frustração. Não se trata de combater, mas de tentar compreender o outro porque conhecê-lo é fundamenal e o uso da força é infrutífero. Porém, estas linhas de interpretação apresentam uma grande desvantagem: confundem o pretexto e a causa. Na verdade, o terrorismo implanta-se em patologias existentes e condiciona-as, uma vez que elas não encontram uma escapatória. Todavia, a sua derradeira motivação é a hostilidade que os fanáticos votam aos princípios de uma sociedade aberta, na qual a igualdade formal é reconhecida por todos. É a nossa existência enquanto tal que é intolerável. Mas esta constatação é, por sua vez, intolerável para nós. Para nos mantermos na esfera da razão e acalentarmos a ideia de que ser razoável é um dever até dos inimigos da razão, vemo-nos obrigados, a todo o custo, a dar argumentos aos assassinos, arriscando -nos a justificar aparentemente os seus actos. Tal como há pregadores do ódio no islamismo radical, há também pregadores da humilhação nas democracias ocidentais, sobretudo entre as elites pensadoras, e o seu proselitismo não é menor. A dar-lhes crédito, temos muitas culpas no cartório uma vez que consentimos, por um simples jogo de relações de forças, a fome, a SIDA, a falta de medicamentos:

Quanto ao terrorismo, explica Jacques Derrida a propósito do 11 de Setembro, será que diz unicamente respeito à morte? Não se pode estabelecer um regime de terror sem matar? Além do mais, matar será necessariamente mandar matar ou será que deixar morrer e querer ignorar o facto não serão aspectos que fazem também parte de uma estratégia terrorista mais ou menos consciente e deliberada? É errado supor levianamente que todo o terrorismo é voluntário, consciente, organizado, deliberado, intencional e premeditado: há situações históricas ou políticas nas quais o terror opera, se assim se pode dizer, por vontade própria, pelo simples efeito de um dispositivo e devido a relações de força vigentes, sem que ninguém, um indivíduo consciente ou uma pessoa, tenha disso consciência ou se diga responsável. Todas as situações de opressão social e nacional a nível estrutural produzem um terror que nunca é natural (que é, portanto, organizado e institucional) e portanto dependem dele, sem que os que delas tiram partido se dediquem a actos de terrorismo e sejam vistos como terroristas. (perceberam A e P?)

Não se engane o leitor somos potenciais terroristas, num ou noutro grau, e semeamos a morte tal como o Sr, Jourdain (o Burguês Fidalgo, de Molière) fazia inadvertidamente no caso da prosa. É claro que, após esta rigorosa argumentação, Jacques Derrida afirmará in fine a sua preferência pela democracia. E não hesita: tendo revelado as mil e uma cumplicidades inadvertidas com o horror, este autor provou que o crime é a coisa mais bem partilhada do mundo. Aliás, um certo tipo de cinema popularizou a imagem de famílias honradas em pequenas cidades pacatas que escondem um triste segredo, uma entidade maléfica. A desconfiança, corrói as paisagens mais idílicas do ocidente. Onde julgamos ver uma oposição aos fundamentalistas, é preciso reconhecer uma equivalência. Em vez de nos indignarmos com as explosões, comecemos por interrogar-nos, por nos dissecarmos sem tabus. No fundo, não é, o que temos de certo modo procurado? Sob a aparência de uma análise complexa, encontramos aqui uma típica postura evangélica e auto-acusação e o castigo público. Como bons herdeiros da Bíblia, julgamos que uma grande desgraça se sucede necessariamente a uma grande infracção. Neste aspecto, a casta intelectual dos países ocidentais é, por excelência, herdeira da clerezia do Antigo Regime. Não estejamos com rodeios: os seus membros estão a mando do pecado original. Querendo a todo o custo desmascarar as aparências, não cessam de insistir na nossa ingenuidade». In Pascal Bruckner, La Tyrannie de la Pénitence, Essai sur le Masochisme Occidental, Editions Grasset Fasquelle, 2006, O Complexo de Culpa do Ocidente. Publicações Europa-América, 2008, ISBN 978-972-1-05943-6.

Cortesia de PEA/JDACT

Poesia no 31. Portugal. «Hoje o dia..., a pena caiu-me das mãos, acabou-se o poema no papel. Cá por dentro continua... Oh! Este marulhar das almas no silêncio! Chuva, caindo tão mansa, em branda serenidade. Hoje minh’alma descansa. Que perfeita intimidade!...»

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Chove? Nenhuma Chuva Cai...
«Chove? Nenhuma chuva cai...
Então onde é que eu sinto um dia
em que ruído da chuva atrai
a minha inútil agonia?

Onde é que chove, que eu o ouço?
Onde é que é triste, ó claro céu?
Eu quero sorrir-te, e não posso,
ó céu azul, chamar-te meu...

E o escuro ruído da chuva
é constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
traçada pelo som do vento...

E eis que ante o sol e o azul do dia,
como se a hora me estorvasse,
eu sofro... E a luz e a sua alegria
cai aos meus pés como um disfarce.

Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro de mim.
Se escuro, alguém dentro de mim ouve
a chuva, como a voz de um fim...

Os céus da tua face, e os derradeiros
tons do poente segredam nas arcadas...

No claustro sequestrando a lucidez
um espasmo apagado em ódio à ânsia
põe dias de ilhas vistas do convés.

No meu cansaço perdido entre os gelos,
e a cor do outono é um funeral de apelos
pela estrada da minha dissonância...»

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Prosa no 31. O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval Jacques le Goff. «Apesar dos jogos das variantes e dos artifícios da literatura hagiográfica, parece-me poder captar nos homens da Idade Média inclusive um certo sentido de cansaço em relação aos santos…»

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O Maravilhoso no Ocidente Medieval
«(…) Os que até agora se pronunciaram sobre o maravilhoso parecem muitas vezes influenciados pela obra, aliás muito interessante, de Tzvetan Todorov sobre a literatura fantástica, e em particular pela distinção que ele estabelece entre o estranho e o maravilhoso, em que o primeiro, o estranho, pode ser identificado pela reflexão, ao passo que o maravilhoso conserva sempre um resíduo sobrenatural que nunca conseguirá explicar-se senão recorrendo ao sobrenatural. Estamos portanto no mundo do sobrenatural, mas parece-me que nos séculos XII e XIII o sobrenatural ocidental se divide em três âmbitos que se recobrem, mais ou menos, com três adjectivos: mirabilis, magicus, miraculosus.
Mirabitis. É o nosso maravilhoso com as suas origens pré-cristãs. Abarca o conjunto dos elementos. Magicus. É sabido que o termo em si podia ser neutro para os homens do Ocidente medieval, porquanto teoricamente se reconhecia a existência de uma magia negra que tinha a ver com o diabo, mas também de uma magia branca que, em contrapartida, era considerada lícita. De facto, o termo magicus, e o campo por ele designado, rapidamente deslizou para o lado do mal, para o lado de Satanás. Magicus é portanto o sobrenatural maléfico, o sobrenatural satânico. O sobrenatural propriamente cristão, aquilo a que justamente poderia chamar-se o maravilhoso cristão, é o que procede do miraculosus; mas o milagre, o miraculum, parece-me ser apenas um elemento, e eu diria até um elemento bastante restrito, do vasto âmbito do maravilhoso. Procurei, sem na verdade descer a pormenores, indicar em que sentido o miraculosus não era mais que uma parte do maravilhoso e até como ele tendia a fazê-lo desvanecer.
Em primeiro lugar porque uma das características do maravilhoso é o ser produzido, certamente, por forças ou por seres sobrenaturais, que são, precisamente, inumeráveis. E uma marca de tal facto pode ser encontrada, creio eu, no plural mirabilia da Idade Média. A realidade é que não apenas temos um mundo de objectos, um mundo de acções diversas, mas que por detrás deles há uma multiplicidade de forças. Ora, no maravilhoso cristão e no milagre há um autor, e um só, que é Deus, e é aqui exactamente que se põe o problema do lugar do maravilhoso não apenas numa religião, mas numa religião monoteísta. Temos depois uma regulamentação do maravilhoso no milagre. Temos simultaneamente um controlo e uma crítica do milagre que, no limite, faz desvanecer o maravilhoso, e por fim temos aquilo a que eu chamo uma tendência para racionalizar o maravilhoso e em particular para despojá-lo mais ou menos de um carácter que me parece essencial, a imprevisibilidade. Se referirmos etimologicamente o maravilhoso a raízes visivas, descobriremos nele, como traço fundamental, a noção de aparição. Ora, o milagre, se depende apenas do arbítrio de Deus, que é exactamente o que o diferencia dos acontecimentos naturais, também estes, como é óbvio, queridos por Deus, mas por Ele decididos uma vez por todas, tendo-se assim estabelecido uma certa regularidade no mundo, não escapa por sua vez ao plano divino e a uma qualquer regularidade. E se o milagre se realiza através daqueles intermediários que são os santos, é preciso dizer que a situação em que estes vão encontrar-se é tal que o verificar-se do milagre por sua intercessão é previsível. Apesar dos jogos das variantes e dos artifícios da literatura hagiográfica, parece-me poder captar nos homens da Idade Média inclusive um certo sentido de cansaço em relação aos santos, já que a partir do momento em que um santo entra em cena já se sabe o que ele vai fazer. Uma vez que se encontre numa determinada situação, sabe-se desde logo que procederá a uma multiplicação dos pães; que operará uma ressurreição, que expulsará um demónio. Dada a situação, já se sabe o que irá acontecer. Temos assim todo um processo de esvaziamento do maravilhoso. E eu acrescentaria que, no que se refere ao cristianismo, alguma dificuldade em aceitar o maravilhoso parece-me provir do facto de que, olhando bem, na Bíblia não lhe é dado um grande espaço». In Jacques le Goff, Il meraviglioso e il quotidiano nell’occidente medievale, Gius, Laterza, 1983, Roma, O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval, Edições 70, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-44-1563-5.

Cortesia de E70/JDACT

Poesia no 31. Brasil. «Porque me faltas, se te procuro? Por que me odeias quando te juro que te perdia se me encontravas e me encontrava se te perdias? E nosso amor, que brotou do tempo, não tem idade, pois só quem ama escutou o apelo da eternidade»

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Ternura
«Eu te peço perdão por te amar de repente
embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
das horas que passei à sombra dos teus gestos
bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
das noites que vivi acalentado
pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo.
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.

E posso te dizer que o grande afecto que te deixo
não trai o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
e só te pede que te repouses quieta, muito quieta
e deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o
olhar extático da aurora».
Poema de Vinicius de Moraes, in ‘Antologia Poética’

O Tempo Passa? Não Passa
«O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda a hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama
escutou o apelo da eternidade».
Poema de Carlos Drummond de Andrade, in ‘Amar se Aprende Amando’

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Prosa no 31. Cartas do Extremo Oriente. Wenceslau Moraes. «Também não simpatizava com a realeza, de que ao contrário de muitos outros da sua classe, não procurava aproximar-se na intenção de melhorar a sua carreira, [...]. Era livre pensador, imbuído das ideias dos filósofos»

Postal de JAN de 1926
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Introdução
«A correspondência de um escritor, dado o seu carácter intimista, confessional e introspectivo, faculta-nos frequentemente dados biográficos e psicológicos relevantes e constitui uma inesgotável fonte histórico-cultural. Acerca destes acervos pródigos em surpresas, se manifestou lapidarmente Eça de Queirós:

[...] uma correspondência revela melhor que uma obra a individualidade, o homem; uma obra nem sempre aumenta o pecúlio do saber humano, uma Correspondência, reproduzindo necessariamente os costumes, os modos de sentir, os gostos, o pensar contemporâneo e ambiente, enriquece sempre o tesouro da documentação histórica. Temos depois que as cartas sendo o produto quente e vibrante da sua vida, contêm mais ensino que a sua filosofia, que é apenas uma criação impessoal do seu espírito. Uma Filosofia oferece meramente uma conjectura mais que se vai juntar ao imenso montão das conjecturas; uma Vida que se confessa constitui o estudo duma realidade humana, que, posta ao lado de outros estudos, alarga o nosso conhecimento do Homem (correspondência de Fradique Mendes, 1969).

Escrever, livros e cartas, constituía para Wenceslau Moraes um acto de catarse, uma compensação para a extrema solidão que lhe alongava os dias, uma ponte erigida para o mundo. Wenceslau viveu grande parte da sua vida longe da terra natal, dos familiares e amigos. Com efeito, desde a sua juventude começou a trilhar as sete partidas do mundo, Estados-Unidos, Médio Oriente, Moçambique, Timor, Macau, China e Japão, primeiramente na qualidade de oficial da Marinha e, mais tarde, de Cônsul. As suas estadas em Portugal foram, portanto, breves e pouco frequentes, sendo a última vez que pisou terra portuguesa em 1891. Desenraizado, torturado, aguilhoado pela saudade, afectivamente descompensado, Wenceslau supriu a ausência dos seus entes queridos com uma correspondência assídua, de que se conhecem centenas de cartas maioritariamente inéditas. Reúne-se a correspondência dirigida pelo escritor ao médico naval Sebastião Peres Rodrigues, ao Cônsul de Portugal em Kobe, Cerveira Albuquerque, e ao engenheiro-maquinista João Manuel Guerreiro Amorim. Este espólio, inédito na sua esmagadora maioria, encontra-se depositado na Biblioteca Central da Marinha, em Lisboa. A correspondência é relevante pois pertence a três fases distintas e marcantes da vida do escritor:
  • a sua vivência em Macau e em Kobe;
  • o seu quotidiano em Tokushima, cidade do sul do Japão onde se homiziou, na sequência da sua demissão de Cônsul e de oficial da Marinha, em 1913;
  • o desmoronamento físico e psíquico dos últimos e dramáticos anos da sua vida.
Revelam-nos estas cartas a depressão que sempre acompanhou Wenceslau, as fracturas afectivas sucessivas, o relacionamento difícil com o outro, a sua sensibilidade dorida, a insegurança que sentia relativamente à sua obra, a ligação tempestuosa mantida com a chinesa Vong-Ioc-Chan e com os dois filhos, José Sousa Moraes e João Sousa Moraes, a afectividade extrema que nutria pela esposa japonesa O-Yoné e pela sobrinha Ko-Haru. Este volume deixa ainda transparecer a mundividência política do escritor. Com efeito, a sua postura perante o regicídio que teve lugar em 1908, bem como excertos de outras cartas, refutam plenamente a tese do seu monarquismo, levantada ignominiosamente na sequência da sua abrupta demissão em 1913, considerada como uma reacção ao regime republicano que despontava. Por outro lado, revela-nos também que Wenceslau se manteve crítico relativamente à anarquia, ao populismo e ao nepotismo que se foram gradualmente instaurando nas hostes dirigentes republicanas, à semelhança do que aconteceu com outras figuras relevantes da época como Raul Proença e António Sérgio. Abra-se um parêntesis para nos socorrermos de um depoimento inédito de Sebastião Peres Rodrigues, acerca das suas ideias políticas, que é bem elucidativo e fidedigno pois foi feito por alguém que o conheceu bem de perto:

Não as tinha positivas. Não indiferente, mas de critério puramente negativista, descrente das boas intenções dos politicantes. Em política colonial indignava-o a sistemática espoliação do indígena e tinha por hipócritas todas as afirmações oficiais da pretendida assistência e igualização liberal. Quanto a formas de governo não se descosia, mas revelava-se céptico e sem simpatia alguma pelos homens do seu tempo que propagandeavam as ideias avançadas no sentido de substituir a República à Monarquia. Também não simpatizava com a realeza, de que ao contrário de muitos outros da sua classe, não procurava aproximar-se na intenção de melhorar a sua carreira, pois isso ser-lhe-ia facilitado pelas suas relações de família [...]. Era livre pensador, imbuído das ideias dos filósofos enciclopedistas (carta de 9 de Janeiro de 1888) [...].

A correspondência dirigida a Sebastião Peres Rodrigues, que apresenta algumas lacunas, constitui o núcleo mais importante, facto que decorre das relações privilegiadas que mantinham, forjadas a partir de 1886, data em que se encontraram na canhoneira Douro, em viagem para Moçambique». In Wenceslau de Moraes, Cartas do Extremo Oriente, Fundação Oriente, Lisboa, 1993, ISBN 972-9440-07-7.

Cortesia de FOriente/JDACT

domingo, 30 de março de 2014

Música. Nico. Gáfete. Poesia. «Harmonioso vulto que em mim se dilui. Tu és o poema e és a origem donde ele flui. Intuito de ter. Intuito de amor não compreendido. Fica assim amor. Fica assim intuito. Prometido»

Um amor na vida
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[…]
«Se ao menos eu gelasse uma corda do vento
para encontrar a forma exacta dum violino
que fosse a sensibilidade deste pensamento
com que a minha sombra vai pensando o meu destino.

E não houvesse o sono dum telhado
entre ter de haver eu e haver o tecto;
e a eternidade não estivesse ao lado
a colocar-nos nas costas as asas dum insecto.»
[…]


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Noite de 15 de Julho de 1900. Conferência Pública. Atheneu Commercial de Lisboa. Alexandre Herculano. Diogo Rosa Machado. «… se elle estava convicto de que o sacramento do matrimonio remontava aos primeiros séculos do christianismo, como procedeu o grande historiador contra as suas opiniões casando-se catholicamente?»


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«(…) Herculano, com a sua crença religiosa, ficou profundamente impressionado pelos estragos que a Companhia de Jesus fazia no christianismo; por isso mostra-nos, em muitas das suas paginas immortaes, quão perigosa é para o futuro da nossa pátria essa sociedade fundada no século XVI por Santo Ignacio de Loyola e cujas intrigas obrigaram a sair de Portugal os lentes mais distinctos da Universidade de Coimbra. Na prosa mais poética e viril que nos apresenta a nossa litteratura, expoz e criticou os factos mais interessantes da historia do ultramontanismo; com a sua vista de aguia previu os progressos que o jesuitismo havia de fazer em nossos dias. Theophilo Braga censura a Herculano o seu ardor em combater o jesuitismo e os novos dogmas introduzidos na religião catholica, dizendo que elle dispendeu as suas forças contra os moinhos de vento do marianismo, do infallibilismo e do syllabismo e que o jesuitismo se tornou para elle uma preoccupação constante; mas, como o auctor da Historia do romantismo se tem occupado dos mesmos assumptos, é evidente que escreve contra si próprio, o que me causa verdadeiro pasmo. Alem d'isto a censura feita a Herculano recae sobre a própria imprensa republicana, que muito frequentemente narra e estigmatiza escândalos jesuíticos. É o poder da igreja tão pequeno que se não devam combater com a máxima energia as suas doutrinas contrarias ao bem social? Tem porventura o jesuitismo tão pouca força que se deva considerar um elemento desprezível?
Não tem a Companhia de Jesus progredido assombrosamente no nosso país? Não estão os colégios jesuíticos repletos de alumnos? Leibnitz, um dos génios mais vastos e profundos não só da Allemanha mas de todo o mundo, disse muito sensatamente: Dae-me a educação, que eu transformarei a Europa em menos de um século. Alexandre Herculano, com o seu profundo critério, conhecia a grande força da educação; por isso receava que o jesuitismo viesse causar a decadência intellectual e moral da sua pátria. A moral perversa dos jesuítas foi no século XVII posta a descoberto não por um impio, não por um atheu, mas por um dos mais eloquentes e profundos apologistas do christianismo, por um génio prodigioso que, depois de ter feito os mais assombrosos descobrimentos scientificos, depois de ter penetrado vários segredos da natureza, depois de ter resolvido os mais difficeis problemas da mathematica, levantou, em favor do christianismo, esse grandioso monumento philosophico intitulado Pensamentos, que, apesar de ter ficado incompleto, revela a profundeza do génio que o traçou; este grande homem, este escriptor religiosíssimo, este moralista austero, que se chamava Blaise Pascal, foi quem mais poderosamente contribuiu para a queda dos jesuítas no século XVIII. As suas Provinciaes, escriptas num estylo comico e vigoroso, espalharam-se por toda a Europa e as máximas corruptas dos jesuítas foram ridicularizadas não só nas academias mas até nos palácios dos reis. Como poderia Herculano, o enthusiasta ardente da moral pura e severa do Evangelho, deixar de combater energicamente as doutrinas anti-christãs da seita jesuítica?
Diz Theophilo Braga que Herculano, depois de se mostrar partidário do casamento civil, veiu a casar-se catholicamente; o distincto professor acha este procedimento contradictorio com as opiniões de Herculano. Quando, ao ler a Historia do romantismo, encontrei esta asserção tão infundada, fiquei realmente estupefacto. Theophilo Braga inverte completamente as doutrinas de Herculano, expostas com tanta lucidez nos seus Estudos sobre o casamento civil, e colloca-se a uma distancia que lhe torna impossível apreciá-lo com exactidão. Não ha escripto algum em que Herculano tivesse combatido o casamento catholico; pelo contrario, elle admittia duas espécies de casamento: o catholico e o civil. O que repugnava ao seu espirito profundamente liberal e tolerante é que os indivíduos que não acreditassem no catholicismo se vissem obrigados a receber o sacramento do matrimonio, a praticar um acto contrario ao seu modo de pensar e que elle considerava um verdadeiro sacrilégio, uma offensa á religião. Se Herculano era um velho catholico, se elle estava convicto de que o sacramento do matrimonio remontava aos primeiros séculos do christianismo, como procedeu o grande historiador contra as suas opiniões casando-se catholicamente? Herculano nunca defendeu leis que prohibissem a qualquer individuo o seguir as suas crenças, tinha o mais profundo respeito pela liberdade de consciência, era inimigo de todas as violências feitas ao espirito humano, queria liberdade para todos, não era intolerante como os hypocritas da liberdade, que não respeitam a consciência alheia. Herculano sustentou que devia existir um registo civil especial para os casamentos dos não catholicos, não admittindo que os nubentes fossem interrogados acerca das suas crenças religiosas, o que, segundo a sua opinião, seria um attentado contra a liberdade de consciência, um processo verdadeiramente inquisitorial. Quanto ao casamento catholico, considerava-o debaixo de dois aspectos: como sacramento e como contracto. Estando num país, cuja maioria era constituída por catholicos, admittia que o registo ecclesiastico servisse de registo civil. Era assim que o grande historiador procurava conciliar o princípio sacrosanto da liberdade de consciência com o respeito á religião do estado. Sejam quaes forem as opiniões acerca das doutrinas sustentadas por Herculano relativamente ao casamento civil, é incontestável que não ha fundamento algum para se affirmar que o seu casamento catholico esteve em contradicção com as suas idéas». In Diogo Rosa Machado, Alexandre Herculano, Conferência Pública realizada no Atheneu Commercial de Lisboa, na noite de 15 de Julho de 1900, Livraria Editora Tavares Cardoso Irmão, Lpor H539. Yma, 556544, 14.1.53.

Cortesia de LTCardoso Irmão/JDACT

História do Romantismo em Portugal. Ideia geral do Romantismo. Garrett, Herculano, Castilho. Teófilo Braga. «… o primeiro que formulou o principio, o homem é obra de si mesmo, que, na Scienza Nuova achou uma lei racional da vida collectiva do homem sobre a terra, esse mesmo…»

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NOTA: Conforme o original

Causas do Romantismo.
Erudição medieval dos historiadores modernos
«(…) Apesar da immensa elaboração económica e scientifica, o século XIX distingue-se principalmente pelo génio histórico: a renovação intellectual partiu da abstraçao metaphysica para a critica, das hypotheses gratuitas para a sciencia das origens, do purismo rhetorico para a philologia, oppoz aos designios providenciaes o individualismo, deu ás sciencias académicas, que serviam para alardear erudição, um intuito serio indagando nos factos mais accidentaes os esforços do homem na sua aspiração para a liberdade; só em um periodo assim positivo é que se podia achar a unidade de tamanha renovação; essa unidade é a Historia. Quebraram-se as velhas divisões da historia sagrada e profana, de historia antiga e moderna; todas as creações do homem, por mais fortuitas merecem hoje que sejam estudadas nos documentos que restam; as instituições sociaes, as industrias, os dogmas, o direito, as línguas, as invasões, as obras inspiradas pelo sentimento, os costumes, superstições, são objecto de outras tantas sciencias, separadas por methodo para melhor exame, mas comparadas e unidas, em um único fim, a sciencia do homem. Em todas estas creações da actividade humana, o fatalismo supplanta nos períodos primitivos a liberdade, o sentimento suppre a falta do desenvolvimento da rasão, a auctoridade impõe-se á consciência e á responsabilidade moral, emfim a paixão não deixa ao homem a posse plena de si mesmo, o acto praticado revela quasi sempre ura paciente em vez de um órgão activo. A historia religiosa ou politica, a historia das invenções, a historia da linguagem, mostram-nos o homem n'este estado secundario, n'esta dependência de espirito; terror sagrado e auctoridade, acaso, e formação anonyma provocada pela necessidade de uma communicação immediata, são moveis violentos que arrastam o homem em vez de serem exercidos e dirigidos pela sua liberdade. Nas condições sentimentais em que entra já um elemento de rasão não acontece assim: as creações artisticas não são provocadas pelo interesse, não têm um fim calculado, não se impõem dogmaticamente, não se exigem, nem são fatalmente necessárias. Isto prova o seu grande valor, a sua proximidade dos resultados finaes d'esta grande e unitária sciencia do homem.
É por isso que no século que soube conceber a filosofia da historia, que soube deduzir da discordância das religiões e das linguas, das raças e dos climas uma harmonia superior, a tendência para a perfectibilidade indefinida do homem, só a esse século competia lançar as bases positivas da historia das litteraturas. Dá-se aqui uma coincidência que explica este facto; o primeiro que formulou o principio, o homem é obra de si mesmo, que, na Scienza Nuova achou uma lei racional da vida collectiva do homem sobre a terra, esse mesmo, o inaugurador da philosophia da historia, Vico, propoz do modo mais racional as bases da critica homérica e a verdadeira theoria da evolução do teatro grego. N'estes dois processos estavam implicitos os modos como a moderna historia procede no exame das litteraturas.
Foi também Schlegel, o que primeiro fez sentir a unidade das linguas indo-europêas, o mesmo que determinou a lei orgânica que dirigiu a elaboração das Litteraturas novo-latinas. Repetimos, a historia das litteraturas é uma creação moderna; quando Aristóteles ou Quintiliano observaram o modo de revelar os sentimentos nas obras da litteratura grega, achavam n'ellas, é verdade, um produto vivo, mas não procuravam a espontaneidade da naturesa, procuravam o canon rhetorico dentro do qual ella devia ficar restricta todas as vezes que precisasse exprimir sentimentos análogos. Eusthato e Donato, estudando Homero ou Virgilio, não iam mais longe do que a colligir as tradições da escola que bordaram a vida dos poetas, separados da sua obra e peior ainda da sua nacionalidade. Os trabalhos de Struvio e Fabricio reduziram-se a vastas indagações bibliographicas dos monumentos que restavam da antiguidade. Os jurisconsultos da escola cujaciana, animados com o espirito critico da Renascença, tiveram por isso mesmo um vislumbre mais verdadeiro do que viria a ser a historia das litteraturas; elles foram ás obras litterarias do teatro romano, ás satyras de Juvenal e Horácio procurar a colisão dos interesses sociaes para recompôrem o sentido dos fragmentos das leis que se haviam perdido n'esta renovação da Europa chamada os tempos modernos». In Teófilo Braga, História do Romantismo em Portugal, Ideia geral do Romantismo, Garrett, Herculano, Castilho, Nova Livraria Internacional, Imprensa Sousa Neves, Lisboa, 1880.

Cortesia NLInternacional/JDACT

História do Romantismo em Portugal. Ideia geral do Romantismo. Garrett, Herculano, Castilho. Teófilo Braga. «A verdade existe quando a theoria condiz com o facto; efectivamente a Allemanha recebeu da Inglaterra o primeiro impulso para a renovação litteraria que se propagou aos povos do meio dia»

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NOTA: Conforme o original

Ideia Geral do Romantismo
Como a Europa se Esqueceu da Edade Media
«(…) A Itália, tornada a sede da erudição, venceu muitas vezes a corrente deletéria, pelo encyclopedismo dos seus grandes  génios que presentiram e aspiraram a unidade nacional; a pintura, como não teve que imitar da antiguidade, attingiu logo no século XV a máxima perfeição; a musica, procurando os modos gregos, e querendo harmonisar-se com a tradição gregoriana da egreja, jazeu embryonaria até ao século XVIII. A Hespanha, perdeu a creação do seu Romanceiro, já extincta no século XV; os poetas traduziram e imitaram a antiguidade, como Santilhana ou Vilhena, mas o theatro foi original, não só porque sob a pressão catholica era o único órgão da opinião publica, mas porque se baseava sob o fundo tradicional e histórico da nacionalidade. Portugal nunca dera forma ás tradições, que possuia; a sua litteratura, como o notou Wolf, teve de imitar sempre, attingindo por isso uma prioridade de quem não elabora, e uma perfeição de quem só reproduz mechanicamente; em vista d'este caracter o Romantismo só podia apparecer n'este paiz, quando elle estivesse auctorisado, e se admittisse como imitação. Logicamente foi Portugal o ultimo paiz onde penetrou o Romantismo. Por uma connexão evolutiva profunda, em todos os paizes onde se estava operando uma nova ordem na forma politica, seguiu-se egualmente essa crise litteraria, que fazia com que se procurasse reflectir a expressão ou caracter nacional nas creações da litteratura. Por isso durante as luctas do Romantismo, muitas vezes os partidários dos novos princípios litterarios foram acusados de perturbadores da ordem publica, como em França, e até assassinados como demagogos pelo despotismo na Itália.

Marcha da Renascença Românica
Competia á Allemanha, que iniciara com a Reforma a liberdade de consciência, completar a obra proclamando a liberdade do sentimento. O movimento do Romantismo partiu da Allemanha, porque era a nação que pelos seus hábitos philosophicos mais depressa podia chegar á verdade de uma concepção racional, e porque os thesouros das suas tradições, apesar, dos séculos que se immolou ao catholicismo, eram por tal forma ainda ricos, que ao primeiro trabalho de Graaf, reconstituiu-se a velha lingua allemã, pelo trabalho de Jacob Grimm, a mythologia e o symbolismo germânico, pelo trabalho de Guilherme Grimm e Lachmann, as Epopêas da Allemanha, a ponto de um Stein levar o espirito nacional para a independência, e Bismarck aproveitar esta mesma corrente da renovação das tradições e fundir todas as confederações em uma absurda unificação imperial. Depois da Allemanha, era á Inglaterra, pelas condições de independência civil e politica provenientes das suas instituições, que se podia ir procurar o segredo da originalidade litteraria. Pela justa coexistência entre uma aristocracia territorial e as classes industriaes, a realesa não pôde usar as forças sociaes segundo o seu arbitrio; a crise religiosa provocada por Henrique XVIII, e a revolução politica de Cromwel, foram dois dos maiores impulsos para a dissolução do regimen catholico-feudal. Uma sociedade trabalhada pelas emoções de tão importantes movimentos, não podia deixar de se inspirar da sua actividade orgânica; os escriptos de um Shakespeare, de Ben-Jonhson, de Marlow, de De Foë, de Fielding, de Swift, de Richardson, têm todos os caracteres da litteratura moderna: a vida subjectiva da consciência individual aproximada da generalidade humana, os interesses e situações de uma vida social que se funda em deveres domésticos ou de familia. Os romances de Walter Scott serão sempre bellos e um grande documento para extremar as litteraturas modernas das antigas, em que a vida publica era o objecto da idealisação artística; por esta clara concepção de Gomte, é que entendemos que a palavra Romantismo exprime cabalmente o facto da renovação das litteraturas da Europa no principio d'este século. A verdade existe quando a theoria condiz com o facto; efectivamente a Allemanha recebeu da Inglaterra o primeiro impulso para a renovação litteraria que se propagou aos povos do meio dia.
Temos até aqui mostrado como a Europa perdeu o conhecimento das suas relações com a Edade media, e quaes os povos que estavam em condições mais favoráveis para as descobrir. Falta ainda seguir o trabalho d'essa renovação; é a esta parte que chamaremos causas do Romantismo. Desde o começo este século assignalou-se por um novo critério histórico; a erudição quebrou as estreitas faixas em que a envolveram os commentadores das obras da antiguidade, e exerceu-se sobre as instituições da Edade media. O christianismo, tido até ali como único mediador da civilisação, teve de ceder a maior parte de seus titulos ao fecundo elemento germânico modificado pela civilisação greco-romana. Diez cria a grammatica geral das linguas românicas, e assim se descobre a unidade dos povos românicos. Desde que Kant enceta a renovação philosophica, o problema da esthetica, ou philosophia da arte, nunca mais foi abandonado; por seu turno Fichte, Schelling e Hegel levam á altura de sciencia a critica das creações sentimentaes. A estas duas causas, accresce o dar-se em quasi todos os povos da Europa, em consequência da revolução franceza, uma aspiração nacional em virtude da qual a realesa despotica teve de acceitar as cartas constitucionaes: ou também, no periodo das insensatas invasões napoleónicas, os povos tiveram de resistir pela defensiva, reconhecendo assim pelo seu esforço o gráo de vida da nacionalidade. As litteraturas tiveram aqui um ensejo para se tornarem uma expressão viva do tempo. Sciencia complexa, como todas as que analysam e se fundam sobre factos passados dentro da sociedade e provocados por ella, a historia litteraria só podia ser creada em uma época em que o homem dotado de faculdades menos inventivas, está comtudo fortalecido com o poder de observar-se e de conhecer o gráo de consciência ou de fatalidade que teve nos seus actos». In Teófilo Braga, História do Romantismo em Portugal, Ideia geral do Romantismo, Garrett, Herculano, Castilho, Nova Livraria Internacional, Imprensa Sousa Neves, Lisboa, 1880.

Cortesia NLInternacional/JDACT

A Morte do Lidador. Resumo. Alexandre Herculano. «Ao romper d'alva, os cavaleiros do Lidador saíam mais de dois tiros de besta além das muralhas de Beja; tudo porém estava em silêncio, e só, aqui e ali, as searas calcadas davam rebate de que por aqueles sítios tinham vagueados almogaures mouros»

Cortesia de wikipedia

Resumo
«Pajens! Ou arreiem o meu ginete murzelo; e vós dai-me o meu lorigão de malha de ferro e a minha boa toledana. Senhores cavaleiros, hoje contam-se noventa e cinco anos que recebi o baptismo, oitenta que visto armas, setenta que sou cavaleiro, e quero celebrar tal dia fazendo entrada por terras da frontaria dos mouros. Isto dizia na sala de armas do castelo de Beja Gonçalo Mendes da Maia, a quem, pelas muitas batalhas que pelejara e por seu valor indomável, chamavam o Lidador. Afonso Henriques, depois do infeliz sucesso de Badajoz, e feitas pazes com el-rei Leão, o nomeara fronteiro da cidade de Beja, de pouco tempo conquistada aos mouros. Os quatro Viegas, filhos do bom velho Egas Moniz, estavam com ele, e outros muitos cavaleiros afamados, entre os quais Ligel de Flandres e Mem Moniz, que a festa de vossos anos, Senhor Gonçalo Mendes, será mais de mancebo cavaleiro que de capitão encanecido e prudente. Deu-vos el-rei esta frontaria de Beja para bem a haverdes de guardar, e não sei se arriscado é sair hoje à campanha, que dizem os escutas, chegados ao romper d'alva, que o famoso Almoleimar correr por estes arredores com dez vezes mais lanças do que todas as que estão encostadas nos lanceiros desta sala de armas. Voto a Cristo, atalhou o Lidador, que não cria em que o senhor rei me houvesse posto nesta torre de Beja para estar assentado à lareira da chaminé, como velha dona, a espreitar de quando em quando por uma seteira se cavaleiros mouros vinham correr até a barbacã, para lhes cerrar as portas e ladrar-lhes do cimo da torre da menagem, como usam os vilãos. Quem achar que são duros de mais os arneses dos infiéis pode ficar-se aqui.
 - Bem dito! Bem dito!, exclamaram, dando grandes risadas, os cavaleiros mancebos. - Por minha boa espada!, gritou Mem Moniz, atirando o guante ferrado às lájeas do pavimento, que mente pela gorja quem disser que eu ficarei aqui, havendo dentro de dez léguas em redor lide com mouros. Senhor Gonçalo Mendes, podeis montar em vosso ginete, e veremos qual das nossas lanças bate primeiro em adarga mourisca. A cavalo! A cavalo!, gritou outra vez a chusma, com grande alarido. Dali a pouco, ouvia-se o retumbar dos sapatos de ferro de muitos cavaleiros descendo os degraus de mármore da torre de Beja e, passados alguns instantes, soava só o tropear dos cavalos, atravessando a ponte levadiça das fortificações exteriores que davam para a banda da campanha por onde costumava aparecer a mourisma.
Era um dia do mês de Julho, duas horas depois da alvorada, e tudo estava em grande silêncio dentro da cerca de Beja: batia o sol nas pedras esbranquiçadas dos muros e torres que a defendiam: ao longe, pelas imensas campinas que avizinhavam o têso sobre que a povoação está assentada, viam-se ondear as searas maduras, cultivadas por mãos de agarenos para seus novos senhores cristãos. Regados por lágrimas de escravos tinham sido esses campos, quando formoso dia de inverno os sulcou o ferro do arado; por lágrimas de servos seriam outra vez umedecidos, quando, no mês de Julho, a paveia, cercada pela fouce, pendesse sobre a mão do ceifeiro: choro de amargura havia aí, como, cinco séculos antes, o houvera: então de cristãos conquistados, hoje de mouros vencidos. A cruz hateava-se outra vez sobre o crescente quebrado: os coruchéus das mesquitas convertiam-se em campanários de sés, e a voz do almuadem trocava-se por toada de sinos, que chamavam à oração entendida por Deus. Era esta a resposta dada pela raça goda aos filhos d'África e do Oriente, que diziam, mostrando os alfanges: é nossa a terra de Espanha. O dito árabe foi desmentido; mas a resposta gastou oito séculos a escrever-se. Pelaio entalhou com a espada a primeira palavra dela nos cerros das Astúrias; a última gravaram-na Fernando e Isabel, com os pelouros de suas bambardes, nos panos das muralhas da formosa Granada: e esta escritura, estampada em alcantis de ontanhas, em campos de batalha, nos portais e torres dos templos, nos bancos dos muros das cidades e castelos, acrescentou no fim a mão da Providência, assim para todo o sempre! Nesta luta de vinte gerações andavam lidando as gentes do Alentejo.
O servo mouro olhava todos os dias para o horizonte, onde se enxergavam as serranias do Algarve: de lá esperava ele salvação ou, ao menos, vingança; ao menos, um dia de combate e corpos de cristãos estirados na veiga para pasto dos açôres bravios. A vista do sangue enxugava-lhes por algumas horas as lágrimas, embora as aves de rapina tivessem, também, abundante ceva de cadáveres de seus irmãos! E este ameno dia de Julho devia ser um desses dias por que suspirava o servo ismaelita. Almoleimar descera com os seus cavaleiros às campinas de Beja. Pelas horas mortas da noite, viam-se as almenaras das suas talaias nos píncaros das serras remotas, semelhantes às luzinhas que em descampados e tremedais acendem as bruxas em noites de seus folguedos: bem longe estavam as almenaras, mas bem perto sentiam os escutas o resfolegar e o tropear de cavalos, e o ranger das folhas secas, e o tinir a espaços de alfange batendo em ferro de caneleira ou de coxote. Ao romper d'alva, os cavaleiros do Lidador saíam mais de dois tiros de besta além das muralhas de Beja; tudo porém estava em silêncio, e só, aqui e ali, as searas calcadas davam rebate de que por aqueles sítios tinham vagueados almogaures mouros, como o leão do deserto rodeia, pelo quarto de modôrra, as habitações dos pastores além das encostas do Atlas». In Alexandre Herculano, A morte do Lidador, Resumo, Antologia da Literatura Mundial, Logos, 1959.

Cortesia de Logos/JDACT