Heranças. Animais,
imagens e símbolos nos poetas greco-latinos
«(…) Temos de reconhecer que não haverá trecho mais belo e, ao mesmo
tempo, mais patético sobre a vida de um fiel amigo do homem: os bons tempos, a
velhice miserável, a morte, de alegria, ao rever o seu senhor. E não esqueçamos
que data do século VIII a. C. ! Depois de Homero não pára a utilização de
animais em imagens do homem. Uns mais, outros menos, todos os poetas a elas
recorrem. Alguns poemas há, porém, dignos de serem salientados. A Hesíodo (séc.
VII a. C.) ficamos a dever, por exemplo, um delicado trecho que, por assim
dizer, prenuncia a tábula esópica. Para ilustrar a chamada lei do mais forte, o
autor da Teogonia escreve um breve apólogo em que um falcão exerce a sua
prepotência sobre um pequeno rouxinol. Este:
miserável, trespassado pelas garras curvas, lamentava-se, mas o falcão
disse-lhe, impetuosamente: Porque gritas, infeliz? És presa de um muito mais
possante. Irás aonde te levar, por muito bem que cantes. Conforme queira,
comer-te-ei ou soltar-te-ei. Tolo é quem quer comparar-se a alguém mais forte:
não vence, e a vergonha aumenta a dor (Trabalhos
e Dias).
Após Hesíodo, um dos poetas mais originais é, sem dúvida, Simónides de
Amorgo (séc. VI a. C.) que nos deixou uma curiosa Sátira contra as mulheres, na qual, aliás, desenvolve um tema anteriormente
tratado por Focílides. Apesar de não esconder a existência de mulheres tão
trabalhadoras como a abelha (entre parênteses diga-se que a imagem vem de
Hesíodo, mas referida ao homem...), Simónides espraia-se pelos defeitos
femininos que mais detesta. Para os identificar, escolhe viários animais,
alguns dos quais se fixaram também com valor simbólico. Deste modo, representa
pela porca a mulher que não cuida de
si nem da casa; a mulher espertalhona, mas velhaca, pela raposa; a mulher rezingona, pela cadela; a mulher que só trabalha à força de ameaças, pela burra; a mulher que não apenas é dada à
luxúria, mas também rouba, pela doninha
(animal que, ao longo dos séculos, começou a ser cada vez menos utilizado);
a mulher vistosa e vaidosa, pela égua;
e a mulher feia e maliciosa, pela macaca.
E assim se vão fixando mais alguns valores. Nos tragediógrafos do século V a.
C. voltamos a encontrar um manancial de imagens idênticas às homéricas. Como,
porém, a temática da tragédia está muito próxima da da epopeia,
limitar-nos-emos a referir alguns valores.
No domínio de que vimos tratando, Sófocles mostra-se pouco original e
tem marcada preferência por aves como modelo: até a valorosa Electra chora o
pai como rouxinol gemedor. A criação
sofocliana mais interessante será o termo injurioso kivadoç, que Ájax dirige a
Ulisses. Tratando-se do mais astuto dos heróis, está bem aplicado este raposão
(que assim podemos traduzir o vocábulo grego). A Eurípides devemos, por
exemplo, o emprego metafórico de cadela
com intenções insultuosas. A cadela
não pode deixar de ser Helena. Também lhe devemos o primeiro uso da oposição
pomba / falcão, a retratar perseguido
e perseguidor (Andrómaca). Ésquilo é o poeta mais produtivo.
Demoremo-nos um pouco nas suas imagens. O leão
reaparece com os valores habituais e também, pela primeira vez, como espelho da
majestade de Agamémnon, na tragédia com o mesmo nome (1258-1260). O rouxinol
e o cisne concretizam manifestações da tristeza de frágeis heroínas, como,
por exemplo, os lamentos de Cassandra, ao pressentir a morte. Primeiro,
Cassandra lembra um rouxinol que não
pára os seus queixumes; depois, como um cisne,
geme num último canto, o canto da morte. Está implícita a conotação da melodia
dos respectivos cantos, já que à voz doce do rouxinol se associava a do cisne,
que se acreditava cantar melodiosamente antes de morrer.
A andorinha transmite uma das
ideias mais originais de Ésquilo, que a utiliza como modelo de
ininteligibilidade aplicado à linguagem de Cassandra, bárbara para os ouvidos de Clitemnestra. Mais curiosas ainda duas
utilizações do galo, que aparece pela primeira vez. Numa, temos uma luta de galos para retratar uma luta de
cidadãos contra cidadãos; noutra, temos a figuração da sobranceria de Egisto,
que lembra ao tragediógrafo um galináceo
vaidoso». In Maria Isabel Gonçalves, Animais, Imagens e Símbolos nos Poetas
Greco-Latinos, Animalia, Presença e Representações, coordenação de Miguel
Alarcão e Outros, Lisboa, Edições Colibri, 2002, ISBN 972-772-353-5.
Cortesia de Colibri/JDACT