quinta-feira, 27 de março de 2014

Saudade da Literatura. Crónica. Antologia. 1984-2012. Manuel António Pina. «Perdemos Fernando Pessoa irremediavelmente; conseguimos salvar Mário Sá-Carneiro, Camilo Pessanha e Cesário, […] onde só se pode chegar armado de um amor proibido aos publicitários e aos donos dos partidos»

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Reivindicação da poesia
«Escrever poesia, como editar poesia, como sobretudo ler poesia, é um acto de amor louco, gratuito e perdulário em tempos como estes, de prosa e de literatura de negócios. Poucas dezenas de exemplares que os prelos, nos intervalos das facturas, dos cartões de visita e dos romances de Lobo Antunes, dão à estampa são lidos quase clandestinamente, no segredo dos quartos, por seres fugidios e perversos, e recolhidos depois no fundo de gavetas intemporais da maledicência dos colegas do escritório e dos assinantes das selecções. Ou são lentamente folheados nos cafés, às horas mortas em que os vendedores já voltaram às ruas e os empregados bancários aos balcões, por aristocratas pálidos e decadentes e por vagos estudantes de Letras.
Ao todo, e descontados os que os leem por obrigação, em penosas autópsias nas aulas de Linguística, não serão mais de duzentos ou trezentos os leitores de livros de poesia, e outros tantos (tudo fica, pois, entre nós, entre nós, não é, O'Neill?) os que inconfessadamente escrevem poesia. Todavia, o número dos que invocam o nome dos poetas em vão, nos discursos ou nas Prosas, ou se organizam em bandos comemorativos a propósito disto ou daquilo, é imensamente superior, constituindo provavelmente a bancada mais ruidosa de toda a troupe cultural. De facto, não há político hoje que não leve Pessoa na lapela quando vai a discursos, nem jornalista que não tenha de cabeça, que não de coração, uma ou duas frases da Mensagem Para ilustrar os leads. A palavra cultura, enche as bocas (e é de crer que algumas bolsas também) e suspeita-se por esses lados que poesia, o que quer que isso seja, tenha algo a ver com cultura. Assim, é indispensável a quem leve amigos ou clientes a casa ter uma edição de versos na estante, ao lado dos livros de Irving Wallace e das prosas de Joaquim Letria. Os mais exquis talvez possuam alguma encadernação dos Rabbayat ou da Comédia, os mais desembaraçados ficar-se-ão pelos Sonetos de Camões em percalina e dourados. De qualquer modo, a qualidade de um homme du monde vê-se hoje tanto pela estante como pela marca de colónia a que fede, e um ou dois livros de poesia ficam bem na estante de uma pessoa de sucesso.
Tudo o que não parece, porém, impedir que alguns editores associais continuem a orgulhar-se de vender os seus livros de poesia a poucas dezenas de eleitos. Com efeito, um dos principais problemas dos poetas, nestes dias, em Portugal, além de o de resistir à tentação de escrever um romance, é o de conseguir manter a sua obra ao recato da chamada crítica e dos concursos do Círculo de Leitores. E um risco indiscutível que uma obra corre, sobretudo se tiver a infelicidade de sair da igreja dos iniciados, é o de começar a ser invocada pelos políticos Para ornamentar as conferências de Imprensa e a servir de slogan à publicidade das cervejas ou dos aldeamentos de férias do Algarve. Seria realmente desastroso se, por exemplo, Helder Moura Pereira fosse publicado nos livros de Bolso da Europa-América ou se o Álvaro Manuel Machado se pusesse a dizer bem na TV, atrás do copo dos cachimbos, dos poemas de António José Forte ou a recomendar Silvia Plath ou Joaquim Manuel Magalhães aos pais de família. Se o escândalo da poesia se tornasse também best-seller, as últimas almas privadas teriam que inventar outro continente interior para onde emigrar e fugir aos turistas. Perdemos Fernando Pessoa irremediavelmente; conseguimos salvar Mário Sá-Carneiro, Camilo Pessanha e Cesário, e o próprio arquipélago pessoano tem ainda recantos e alturas onde só se pode chegar armado de um amor proibido aos publicitários e aos donos dos partidos.
Porque o amor, contrariamente à pornografia, tem horror às partouzes e às multidões. Nos grandes rituais colectivos de poesia, como os dirigidos por Ginsberg nos anos 60, milhares de fiéis comungavam da festa transgressiva da palavra com o poeta celebrante; hoje só ficaram os turistas espiando o espectáculo das galerias, com a mórbida curiosidade de quem observa algo que não sente nem compreende, ou exibindo a poesia como adorno das mais prosaicas intenções, como os crucifixos de ouro sem fé sobre os pêlos do peito e por entre as camisas desgoladas dos gigolos, da Fórmula Um. Expulsos pela horda dos comemorativos de uma boa parte da obra pessoana, os leitores de poesia refugiam-se, como uma espécie em extinção, nas ruínas de Ricardo Reis e nas ortonímias que o estômago da turba não consegue, apesar de todos os esforços, digerir com a mesma facilidade com que consumiu as famigeradas cartas de amor. E é com uma resignação dolorosa que vêem por aí a Chuva Oblíquo à mercê dos copywriters e dos advogados, como se lhes não bastassem as vulgarizações histriónicas dos declamadores da TV e os exercícios estruturalistas de anatomia descritiva dos suplementos literários...» In Manuel António Pina, JN, 19 de Março de 1988.

In Manuel António Pina, Crónica, Saudade da Literatura. Antologia, 1984-2012, selecção de Sousa Dias, Assírio Alvim, Porto, 2013, ISBN 978-972-37-1684-9.

Cortesia de AAlvim/JDACT