«(…) Estou doente, muito doente e fraco. Tenho o corpo numa chaga que
me martiriza dia e noite com comichão, ardor e dores, sinto-me a desfazer por
dentro e por fora, e não há médico capaz de mitigar este sofrimento que parece
ser já um castigo terreno para os muitos males que em Lisboa me atribuem, como
se eu tivesse sido a encarnação do próprio demónio, o rosto secreto do Mal, e de
novo a voz interior me pergunta se espero absolvição dos pecados que possa ter
cometido em nome daquilo em que acreditei e servi. Em horas como estas é sempre
preciso encontrar um culpado, um responsável, um rosto e um nome sobre os quais
se abata a cólera dos novos poderes. Quem
melhor do que eu estaria em condições de preencher este dramático requisito?
Pareço ter sido talhado para desempenhar esse papel no grande teatro da baixeza
humana, em que os papéis de acusadores e carrascos são agora desempenhados por
aqueles que me bajularam enquanto cumpriam as minhas ordens, sempre solícitos,
sempre prontos a ouvir e intrigar, sempre dispostos a denunciar e a colher os
frutos da delação.
Cedo se anunciou de forma eloquente a pena que me estava reservada
quando, mesmo sendo eu ministro do Reino e tendo essa incumbência protocolar
fui afastado da preparação das exéquias do Senhor Rei José I e proibido de
acompanhar o féretro até S. Vicente de Fora, onde me fiz representar pelo meu
filho Henrique, conde de Oeiras e presidente do Senado de Lisboa, que me deu
conta da frieza, indiferença e mesmo imperdoável deselegância com que foi
recebido: Meu pai, não me restou outro
procedimento que não fosse abandonar o local como forma de protesto contra a
maneira como senti ser ferido o meu e o vosso orgulho. Não se trata assim quem representa
aquele que, servindo o Rei e o Estado, deu o melhor de si para que Portugal
progredisse e se tornasse respeitado. Bati com a porta e saí, meu pai, sabendo
que só esse gesto poderia fazer justiça ao vosso bom nome e à dignidade da
nossa família. Assim se lavrava, tacitamente, a sentença que acabou por
me atingir com a chegada a Pombal de dois juízes, no passado dia 9 de Outubro,
com a incumbência de me interrogarem durante horas. Os interrogatórios têm
decorrido horas a fio entre as 11 e as 15 horas, mostrando-se os inquiridores,
a que prefiro chamar inquisidores, totalmente insensíveis à miséria do meu
estado físico, tendo mesmo um deles sussurrado para o colega, em tom jocoso: O homem sofre é de lepra e temos de nos
acautelar com o perigo de contágio.
Falarei no passado ou no presente, ao longo destas memórias, por me ser
já indiferente o tempo verbal. O que conta é que o meu tempo de vida está muito
próximo do fim e tudo me parece agora distante e vago, como se todas as
despedidas tivessem já sido feitas e nada mais houvesse doravante a
acrescentar. Era apenas o começo do meu calvário final que se prolongou por
quase três meses, com sessões de várias horas, em que tudo me era perguntado,
mais para dar como garantida a minha humilhação e sofrimento físico do que para
obterem as respostas que nunca me furtei a dar, mesmo porque, apesar da
debilidade física, a memória se conservava, até por obstinação de nobre
humilhado, ágil e fresca numa atitude de resistência e de firmeza moral. Senhores, responderei a tudo o que me for
perguntado, mas não imaginem que possa ceder no que vos disser, apenas para obter
clemência ou para que encurtem o tempo dos vossos interrogatórios. Quem viveu a
vida como eu a vivi, não se amesquinha agora por tão pouco, seja qual for o
grau do seu sofrimento.
Eu estava condenado muito antes de haver acusação formal, já que, em
Lisboa, os meus inimigos me acusavam de tudo o que a pródiga imaginação lhes
ditava, desde abuso de poder até à criação de um labirinto que envolvia todos
os negócios civis e políticos do Reino. O Marquês de Pombal, ministro do
monarca José I, era agora um animal a abater a qualquer preço, mas antes teria
de ser sangrado em vida com os ferros aguçados da humilhação e do opróbrio. Não
podiam restar-me dúvidas de que me esperava a exoneração imediata e vingativa e
que por isso a ela devia antecipar-me com um pedido bem fundamentado. Disso me
dei conta quando, ao deslocar-me ao meu gabinete para recolher papéis e alguns objectos
pessoais, vi gente que muitos favores me devia e que sempre de mim dependera a
virar-me ostensivamente as costas, como se ali estivesse um assassino ou um
ladrão do erário público. Quando os seres humanos descem a tal patamar de
baixeza, percebemos como é frágil a nossa condição, como é ingrata a memória
daqueles a quem fizemos bem e como, mudando os ventos, também mudam as regras e
os procedimentos do poder. Tinha chegado, sem glória, a hora do afastamento
compulsivo, que só não se consumou sob a forma de crime de sangue porque
ninguém teve coragem bastante para chegar a esse extremo». In José Jorge Letria, Mal por
Mal, Antes Pombal, Uma Memória de Sebastião J. Carvalho Melo, Clube do Autor,
Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-005-8.
Mal por mal, antes Pombal, expressão
popular usada pelo povo de Lisboa quando o marquês de Angeja, que substituiu
Pombal, mandou suspender todas as obras de recuperação da cidade por ele
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