segunda-feira, 10 de março de 2014

Ensaios Camilianos. Óscar Lopes. «… o que sobressai é o intricado quadro genealógico das grandes expiações criminais, e a personificação sumária dos grandes e abstractos móbeis que atribui ao comportamento humano: o ódio, o sentimento amoroso, o remorso, a caridade, e sobretudo, como em Herculano, a vingança»

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Estudos
Camilo Castelo Branco. A novela camiliana. Sua evolução
«(…) Até meados da década de 50, a obra novelística de Camilo não se individualiza notavelmente dentro das tendências principais que entretanto se verificam na ficção em prosa de autoria portuguesa ou traduzida. Tendo-se estreado em letra redonda com paródias de estudante, com sátiras e crónicas anticabralistas, com poesias ultra-românticas, com dramas históricos e um folheto de cordel sobre um crime hediondo, publica por 1848, em O Eco Popular e O Nacional, uma série de folhetins em que, no fundo, se debatem os conflitos sociais e morais da juventude romântica (A Última Vitória de um Conquistador, O Esqueleto, etc.). Trata-se, em geral, de um galã esgrouviado e macilento, segundo a moda de Arlincourt e outros escritores românticos, que, embora de boa índole, se deixa corromper pela podridão social urbana (ideia de Rousseau), seduz uma mulher e a abandona, enfastiado, ou que, então, a ama desvairadamente, mas tem de ceder perante a imposição de um pai tirano que a pretende casar com um rival tão lorpa como rico, de tudo isso resultando enrouquecimentos, mortes pela tísica, pelo suicídio ou assassinato. Camilo não mais abandonará de todo este esquema, que se relaciona com a idealização de uma como que religião do amor, em que as aspirações ideais, o prelibar de bem-aventuranças, só podem recortar-se contra um fundo trágico de impossibilidades sociais, ou de crimes e sacrilégios; em que, por outro lado, a posse física nunca deixa de gerar o fastio quanto à mulher angelizada, o solilóquio lírico de tédio, ou a responsabilização vaga da sociedade ou do destino por tudo isso.
Nesta fase inicial nota-se também, em certos folhetins, como no drama Agostinho de Ceuta, a influência do historicismo e do moralismo grandíloquo de Herculano, que se cruzam em Anátema (1851), a sua primeira novela editada em volume, com a influência de Nossa Senhora de Paris de Hugo (o tema da paixão sacrílega e rancorosa de um sacerdote). Anátema contém já saborosos intermezzos de diálogos, comentários e superstições rurais, e uma curiosa simpatia pelo artesanato seiscentista ainda não proletarizado ou aburguesado, mas constitui também a transição numa tendência que conduz à série novelesca constituída pelos Mistérios de Lisboa (1854) e O Livro Negro do Padre Dinis (1855): a tendência melodramática para o enredo de perseguição, expiação e terror macabro através de várias gerações de uma mesma família, com enjeitamentos, raptos, prisões, crimes, reaparições e reconhecimentos inverosímeis, temperados por incidências de paródia sorridente que aliás não destoa do folhetim romântico, como já conhecemos das Viagens de Garrett. Camilo procura satisfazer assim o gosto do romance negro de aventuras, lançado pelo pré-romantismo inglês (H. Walpole, Ana Radcliffe) e afim do melodrama de Pixérécourt, e de que Soulié, Nodier, Féval, Sue e o próprio Vítor Hugo foram os principais transmissores. É, no entanto, significativo o facto de o nosso novelista esbater, se não eliminar, a crítica da miséria e das degradações morais, das perversões que a miséria provoca, tal como a encontramos nos livros de Eugène Sue e Vítor Hugo, que imita. Camilo manifestou mesmo, e mais que uma vez, a sua antipatia em relação à literatura de crítica social, nomeadamente em relação a Hugo, Balzac e George Sand. Nestes romances folhetinescos daquilo que poderemos considerar ainda a sua fase inicial, o que sobressai é o intricado quadro genealógico das grandes expiações criminais, e a personificação sumária dos grandes e abstractos móbeis que atribui ao comportamento humano: o ódio, o sentimento amoroso, o remorso, a caridade, e sobretudo, como em Herculano, a vingança.
Atendendo à voga de que a novela de Camilo já então gozava, podemos concluir que o tipo de romance que os feuilletons da imprensa francesa consagraram poucos anos depois da Revolução de 1830 e que, na sua melhor época (aquela que medeia entre essa revolução e a de 1848), teve a seu serviço alguns dos melhores e mais progressivos romancistas, adquiriu, ao lançar-se em Portugal por inícios da Regeneração, um carácter acentuadamente sonhador, evasivo, de certo modo análogo ao da ficção historicista. Mas, pelo meio do decénio de 1850 esboça-se uma viragem no sentido do realismo, da novela da actualidade, em que a lição balzaquiana, embora enfraquecida e até mesmo teoricamente criticada, já faz sentir os seus efeitos». In Óscar Lopes, Ensaios Camilianos, Fundação António de Almeida, Greca Artes Gráficas, Porto, 2007, ISBN 978-972-8386-69-6.

Cortesia da F. António de Almeida/JDACT