«(…) Não podes ir muito longe, com esses sapatos sujos! Diabo, que se
esquecera deles! Com os salpicos de água, os sapatos tinham as marcas secas de
lama e poeira. Estragavam-lhe o perfil romântico. Estupor da aguadeira!
Precisava duma lição, a descarada. Foi um passeio magnífico, de peixe abundante
e compensador, e almoçaram numa clareira dos Sete Tanques da Taipa. Com
o êxito das suas qualidades de pescador, Adozindo esqueceu-se dos seus
estafados gabanços, para alívio dos seus companheiros. Ficaram até a conhecê-lo
melhor e ao seu lado simples e cativante. O regresso fez-se já noite e, no
caminho da casa e cheirando a peixe, tomou a súbita decisão de atravessar o Cheok
Chai Un. Cruzou-se com pouca gente, recolhia-se ali cedo, e não viu a sombra
de aguadeira nenhuma. Em casa, ouviu a repetidíssima descompostura do pai, a
que não ligou, apoiado no coro das mulheres que tentavam justificá-lo. Ao
deitar-se, o vulto da aguadeira apareceu, como um espinho no seu orgulho. Durante
uma semana e tal, olvidou o Cheok Chai Un. Afinal, era uma coisa sem
importância que não merecia um cisco de preocupação. No entanto, ao ver passar
pela estrada uma aguadeira de meia-idade e exausta, lembrou-se da negridão
doutra trança. O despeito, de novo, amargou-lhe a boca. Imprudentemente,
retomou o mesmo trajecto do dia da pesca. A hora fremente do poço tinha
passado. Ao aproximar-se do sítio, viu o vazio do movimento, apenas duas
mulheres que puxavam sossegadamente as cordas donde pendiam pequenos baldes.
Mas logo, junto dum paredão, descobriu duas penteadeiras, em volta das quais, uma
mancheia de aguadeiras e lavadeiras se acocoravam, à espera da vez, num zumbido
gárrulo e estouvado.
Uma delas precisamente cravava o pente no negrume dos cabelos da aguadeira
malcriada, esticando-os para trás, o que obrigava a jovem a elevar o queixo e a
mostrar o traço fino do seu pescoço e o relevo atenuado do peito. Era
linda a aguadeira! Parou, para observar melhor. Nem lhe faiscou na
mente que estava no Cheok Chai Un, num bairro de má fama, onde se
penetrava apressadamente para cortar caminho e nunca para visitar e ficar. Nem
que o seu procedimento podia afrontar, por incorrecto e insultuoso. Achava até natural o exame àquele
conjunto de mulheres descalças, como a um cenário exótico. A
algaraviada solta e despreocupada interrompeu-se. Os rostos afivelaram linhas duras,
as moças, as mais tímidas, a encolherem-se, enquanto as penteadeiras
resmungavam indignadas. Os kuai-lous,
que pelo bairro apareciam sumiam-se lepidamente. Aquela era a primeira vez que
um se petrificava diante delas, com um desplante inqualificável. A-Leng
foi a única que se mostrou senhora de si. As narinas principiaram a inflar.
Aquele rapaz era o mesmo do outro dia. Mais uma vez se confirmava que os kuai-lous, não tinham maneiras. Não se
mirava assim, como se ela e as amigas fossem simples galinhas expostas no
mercado. O que está a olhar? Nunca viu mulher nenhuma? - Admirava
o seu cabelo, respondeu, num chinês de sotaque, mas perfeitamente
compreensível. Era um espanto que falasse a língua. Mas dominou-se e disse com aspereza:
-Já admirou bastante. Toca a andar... A voz fina soava
ameaçadora. Não ia diminuir-se nem tremer, no meio daquela assistência. Na mão
surgira uma pedra desgarrada da calçada. Se teimasse, a rapariga era bem capaz
de lançá-la, gritando depois, em algazarra. Corou e obedeceu. Deixou
atrás um coro de gozo e o estilhaçar de gargalhadas.
Outra vez enxotado como um cão tinhoso. Uma garota de pé descalço, uma
criatura abaixo do nível, de criada tinha a coragem de enxovalhá-lo, a ele, o Belo
Adozindo. Pelos vistos, a petulante não se impressionara com a sua
aparência e indumentária de grão-senhor. E a saber que tantas mulheres morriam
por desejar que ele se lhes plantasse em frente. O prestígio de A-Leng
cresceu. Desafiara um kuai-lou, e
este fugira. A notícia espalhou-se pelos becos e vielas do Cheok Chai Un,
com os exageros. À noite, já havia quem afirmasse que fora à pedrada e o diabo, batera em retirada, tremelicando
de pavor. Os afagos da Abelha-Mestra foram nessa noite mais eloquentes.
Não havia dúvida que A-Leng era a princesa.
Adozindo, pela tarde fora, remoeu o novo vexame. A vaidade ferida
era como um redobrado espinho a verrumar-lhe o amor-próprio. Era um desaforo,
precisava de infringir-lhe uma lição! Uma formiga em despique com o Belo
Adozindo. A gargalhada de troça, a pedra em riste, queimavam-lhe de tal
maneira que nem o prometido rendez-vous
com os seios de rola arrulhante adoçava a sua disposição. Não estava afeito a
ser humilhado por uma mulher. Não, não ia consentir que o facto passasse em
claro, impunemente. Não se brincava assim com o Belo Adozindo. No
jantar, desancou na escória do Cheok Chai Un, contra quem se deviam
tomar providências draconianas. Até as raparigas de pé descalço eram atrevidas,
desbocadas, não respeitando o cidadão pacífico que por lá se aventurasse, umas
desavergonhadas. Na boca dele, o Cheok Chai Un transformava-se num
imenso bordel infame, só comparável com o Beco da Rosa. A família,
devorando o saboroso repasto, concordava, como os convidados. No conforto duma
mesa repleta, a toalha branca e rendilhada estendida, sobre a qual refulgiam os
talheres e tilintava a loiça fina, era fácil de criticar. Não se levantava uma
voz generosa, em defesa daquela gente que só contava com ela própria,
abandonada à sua sorte de gueto». In
Henrique Senna Fernandes, A Trança Feiticeira, Fundação Oriente, 1998, ISBN
972-9440-80-8.
Cortesia da F. Oriente/JDACT