quarta-feira, 19 de março de 2014

A História Mítica da Cultura Portuguesa. Leituras. Dalila Pereira Costa. «… após a independência de Portugal, motivado pelo Amor que tudo une (“a saudade”), irradiando este para Ocidente, primeiro na busca das Ilhas Afortunadas, realizando ‘Machim’ (Machico) o Amor na ilha da Madeira, atravessando depois o “Mar Tenebroso”»

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«(…) História mítica não significa, então, desprezo face à história convencional, mas, apoiando-se nesta e ultrapassando-a, intenta atingir numa única verdade englobar o sentido feito destino da História; dito de outro modo, pelo despojamento da materialidade e da corporalidade circunstanciais de que a História necessariamente são feitas, e através de um processo de ascese espiritual, caminhando de símbolo para símbolo, intenta-se fundir o sentido essencial das forças telúricas, celestiais e anímicas que impulsionam o homem no tempo (caminhando do conhecido para o desconhecido) com o sentido essencial da História universal. Em ambos os sentidos, a Península Ibérica, e sobretudo o território da sua costa atlântica (Galiza e Portugal), sempre ponto de passagem entre Oriente e Ocidente, tem desempenhado um estatuto de intermediação, tanto acolhendo a sabedoria primordial e megalítica do culto da Deusa-Mãe em plena terra das serpentes (actual território de Portugal), quando conservando um fillum iniciático proveniente do Oriente e, após a independência de Portugal, motivado pelo Amor que tudo une (a saudade), irradiando este para Ocidente, primeiro na busca das Ilhas Afortunadas, realizando Machim (Machico) o Amor na ilha da Madeira, atravessando depois o Mar Tenebroso, descobrindo o Brasil, simultaneamente levando para o Oriente o que do Oriente viera, unindo as duas partes do mundo numa nova (e consumada) e tripla unidade geográfica, amorosa e gnóstica. Então, num ano exacto, os povos peninsulares dividem a terra inteira em duas metades, como um fruto. E agora contemplemos o Tratado de Tordesilhas como o gesto humano sagrado, de partir ao meio a Terra. E contemplemos nesse dia os Reis Católicos e o enviado de D. João II, como três oficiantes diante dum altar, tomando-a nas mãos, à Terra, e erguendo-a ao alto, como corpo consagrado, partindo-a e dando-a em comunhão ao mundo. Porque só aqui na Península, o sentido sagrado da Terra, se teria reencontrado e encarnado na Idade Moderna. Esse o significado oculto nos Descobrimentos e no Tratado de Tordesilhas: como o seu conhecimento e a sua dádiva ao mundo. Nela só, os povos peninsulares veriam a encarnação da verdade, só nela passível de ser procurada e encontrada. Porque só nela estava o segredo. E o seu nome era Mar Tenebroso. Como o vau de terror que esconde a face da verdade; como divindade. A cultura e o pensamento portugueses recolhem a herança de Creta, destruída pelo racionalismo dórico (a Grécia clássica), Apolo, o deus do razão solar, destruiu a telúrica Gaia (expressão da Deusa-Mãe primitiva), a Grécia heleniza o Mediterrâneo, espalhando a cultura alfabética e o panteão de deuses transcendentes, substituindo pela filosofia, mãe das futuras ciência e técnica romanas, o mito e a vivência imanente da religião. Porém, a divina sabedoria antiga do Mediterrâneo permaneceu no território peninsular, hoje Portugal.
E, paralelamente às costas da Jónia sobre o Mediterrâneo, ao milagre grego como filosofia da razão, livre do mito, como início do pensamento ocidental na ponta da Ásia, tendo para trás a cosmogonia, aqui nas costas peninsulares do Atlântico, estará o milagre ibérico, como pensamento, de novo nascendo do mito e ultrapassando o mito, pela acção racional. Permanecendo vivo no território actual de Portugal, teria sido o fundo sábio da tradição mítica mediterrânea, que privilegia o crer (a pistis grega) ao cálculo (sinónimo de raciocinar em latim), a vivência da comunhão do sagrado ao culto litúrgico formal, a busca do ideal (de cavalaria, de cruzada, de missionação, de evangelização...) errante de Ulisses ultrapassando os limites do quotidiano, que, feito técnica náutica (mito que engloba em si o poder operativo da razão), impulsionou em Quinhentos o Infante Henrique, respaldado no erário da Ordem de Cristo (sucessora portuguesa da Ordem do Templo) a enfrentar e vencer o Mar tenebroso. Saber a verdade aqui [em Portugal] realizou-se como procura sua na terra, unindo-se à sua descoberta. Aqui a filosofia será os Descobrimentos. Agora se vê. E então agora se ligará a descoberta da Terra com a dita ausência aqui de filosofia, como saber desinteressado. Porque aqui nada se fez em abstracto, mas ligado à acção e à Terra. Esse seria o sentido do feito do escoldrinhado da verdade e novo passador de passos. O infante Henrique e Ulisses e os filósofos pré-socráticos, nele teriam o seu continuador. Portugal, com a acção dos Descobrimentos, torna-se a pátria do mito e repõe no saber Ocidental do mundo uma nova configuração paralela à da filosofia (Grécia clássica) e à da fé (o cristianismo), a sabedoria do mito como experiência metafísica da e na acção, reunindo Terra e Céu, humanidade e sagrado, como assim fora antes do milagre grego, autora do império da razão. E tal como a cultura grega pré-helénica morreu cantada pela épica de Homero, na Ilíada e Odisseia, assim a nova configuração mítica moderna nasce cantada por uma nova épica, usando poeticamente o mesmo panteão divino, Os Lusíadas, de Luís de Camões. Não se anula o império do logos grego; pelo contrário, contra o esquema dominante nos manuais de História, que vinculam lógica e cronologicamente mythos e logos em ordem de sucessividade, considerando este não só um progresso da humanidade como uma vitória humanista do conhecimento, não constitui uma inversão desta ordem, mas o enaltecimento da configuração mítica do saber enquanto fundamento do conhecimento histórico, com idêntico estatuto gnosiológico do da razão, e, em última análise, enquanto ideal ético de acção, como motor, individual e colectivo, da passagem do conhecido para o desconhecido». In Dalila Pereira da Costa, A História Mítica da Cultura Portuguesa, Wikipedia.

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