quinta-feira, 6 de março de 2014

Poesia. Pássaro Azul. Joaquim Mota. «Alegria, testemunha de que somos imortais, enquanto somos vivos. Ri! E as tuas feridas já não doem mais do que as rubras papoilas nos loiros trigais. Flor escondida, polpa viva, que longo mistério nos liga para que eu sempre te siga?»

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O que te dana de beleza
que força assim a minha natureza
a prender-se a ti com tal viveza?

Tu és como um fruto marinho
de mares e oceanos de vinho
posto no veludo dum ninho.

Tu és como uma mancha de escuro
em que se ouve o sussurro
de um licor doce e maduro.

Flor escondida, polpa viva,
que longo mistério nos liga
Para que eu sempre te siga?


Malaguenha
Noite, ampla viola e madrugada
que o silêncio guarda e amadura,
voz sem garganta, voz escura,
que sonha em tudo sem pensar em nada.
Que mão caiu assim já tão cansada,
que ao cair feriu com essa estranha
palavra a boca, larga malaguenha
corda sem som de dor já desplumada!?
Em Barcelona, no ano de 1944


Se a morte tivesse só a sua dimensão cristã
cruel seria a vida e uma farsa vã.
Mas há uma mão que ampara com doçura
a queda até da luz na noite mais escura.

Palavras cristãs sobre a morte são como os cães
a comerem o medo que se acumula nas barrigas.
Não vi a noite assim nos pinhais alemães,
Nem no cabelo das mulheres e raparigas.

Não façam mais da morte um entrudo:
envolvam-me no escuro macio como um gato no veludo.
Em 26.2.77

Poemas de Joaquim Gomes Mota, in ‘Pássaro Azul’ 1993, com o nº 506
ISBN 972-9484-28-7

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