quarta-feira, 19 de março de 2014

Para a Ficção. Textos Críticos. Maria Madalena das páginas da Bíblia. Organização de Salma Ferraz. «Maria, mãe de Jesus, casada, pura e assexuada, modelo a ser seguido, e Madalena, sexuada, solteira, ‘meretriz’ e modelo a ser expurgado, uma espécie de segunda Eva. Não estará aqui a raiz da não-ordenação de mulheres até aos dias de hoje?»

Cortesia de wikipedia e jdact

Maria Magdalena. A anti-odisseia da discípula amada
«(…) Os pecados variavam: ser mãe solteira, ser bonita demais, feia demais, retardada mentalmente, ignorante ou por demais inteligente, ou vítimas de estupro. Eram mal alimentadas, surradas, humilhadas e seus filhos levados à força para longe delas. Cabe frisar que a sentença era eterna, não tinha data para terminar. Suas identidades foram adulteradas já que tiveram os seus nomes substituídos por nomes de santas. Constata-se que tudo isso aconteceu quando o mundo assistia aos movimentos pela emancipação da mulher. Estas últimas filhas de Madalena têm hoje mais de 70 anos, perderam o contacto com familiares e não têm saúde, nem dinheiro para viver dignamente, já que foram colocadas nas ruas após o fechamento dessas lavanderias. A princípio, a Igreja Católica se eximiu de qualquer responsabilidade. O caso virou escândalo na Irlanda, quando por acaso um cemitério clandestino foi descoberto num quintal de um dos conventos em Dublin. Lá foram enterradas quase 3.000 filhas de Maria Madalena nos últimos 35 anos. Muitas ex-filhas de Madalena estão exigindo indenização da Igreja Católica por cárcere privado. Segundo a reportagem da Folha de São Paulo, A Igreja já admitiu o seu erro e está estudando uma forma de compensar essas mulheres pelo dano causado. Imaginemos o que essas filhas de Madalena pensavam dela [...] O último asilo Madalena na Irlanda foi fechado em 1996. Estima-se que cerca de 30.000 mulheres passaram pelas lavanderias da Irlanda. Esse episódio foi retratado no filme Em Nome de Deus, (The Magdalene Sisters), que estreou nos cinemas em 2004. Até Mel Gibson, no seu mega sucesso A Paixão de Cristo, seguiu a tradição, identificando Madalena com a mulher acusada de adultério e perdeu uma oportunidade ímpar de esclarecer essa confusão. Pelo contrário, colaborou para a manutenção desse imperdoável equívoco.
Por outro lado há um debate em torno do verdadeiro significado das palavras de Jesus dirigidas à Madalena, o mistério do Non me tangere – Não me toques somente relatado pelo evangelista João no capítulo 20: Recomendou-lhe Jesus: Não me toques, porque ainda não subi para meu Pai. Outras versões trazem não me detenhas. Esta frase tem sido mal interpretada e alguns vêm nela uma espécie de reprimenda de Jesus ao excesso de amor de Madalena. Para nossas considerações, buscamos uma tradução mais acurada do texto original grego de João que seria: Não se apegue a mim ou não me abrace. Primeiramente, Jesus não se afastou rapidamente dela, tampouco lhe ordenou categoricamente que o fizesse. O texto é claro, Jesus recomendou-lhe e também atesta a importância dela, já que uma mulher – Madalena - poderia detê-lo, retardá-lo em sua missão maior. Uma simples mortal poderia deter um deus imortal que se mostra impressionado, quase que perturbado com o amor assustadoramente humano daquela mulher. Madalena era demasiadamente humana e Jesus naquele momento fazia a travessia entre o humano e o divino, estava a caminho da transcendência, não havia assumido ainda a sua natureza imortal, seja lá o que isso signifique, apenas isso. Lembremos que estamos adentrando o campo da fé [...] O amor de Madalena desconhecia as fronteiras e impedimentos teológicos. Na narrativa de Mateus 28, Madalena toca em Jesus, abraçando seus pés e isso ocorre com muita naturalidade. Não objectivamos levantar polémica, mas é estranho o facto de que, apesar de Jesus e Madalena serem tão amigos, tão íntimos, a ponto de Ele se impressionar, logo após a ressurreição, com o facto de Madalena chorar e perguntar-lhe amorosamente: Por que choras?, os quatro evangelistas não relatarem uma única frase de Jesus direccionada à Madalena na cruz.
Jesus dirige palavras, segundo o evangelista João no capítulo 19, para sua mãe (Mulher, eis aí o teu filho) e para o discípulo amado (Eis aí a tua mãe), mas para Madalena, que estava aos pés da cruz, abraçada aos dois, diante do corpo agonizante de Jesus, com seus olhos em direção a Ele, nenhum consolo é mencionado, nem um único monossílabo é emitido em direcção a ela. Pensamos que esse silêncio de Jesus na cruz somente com relação à Madalena é mais um mistério [...] Ou talvez o silêncio dele em relação àquela mulher revelasse mais do que todas as palavras poderiam dizer. E se Ele não disse realmente nada para ela, ela se mostra verdadeiramente uma mulher de fé, pois se lhe foi negada palavra de consolo na cruz, isso não a impediu de vigiar o túmulo e ter a sua recompensa: foi a primeira a ver Jesus ressuscitado e teve a oportunidade de conversar a sós com Ele antes de qualquer outra pessoa. É interessante observarmos que o Apóstolo Paulo, em sua carta aos Coríntios, extirpa completamente o elemento feminino da ressurreição. As cartas do Apóstolo Paulo são anteriores aos Evangelhos, provavelmente foram escritas entre 54-57 de nossa era. Os Evangelhos apareceram em torno do ano 70.
Observemos o que diz a narrativa paulina em I Coríntios 15:

[...] que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. E apareceu a Cefas e, depois, aos doze. Depois, foi visto por mais de quinhentos irmãos de uma só vez, dos quais a maioria sobreviveu até agora [...] Depois, foi visto por Tiago, mais tarde, por todos os apóstolos e, afinal, depois de todos, foi visto também por mim, como por um nascido fora do tempo.

Se analisarmos o conjunto das cartas de Paulo, elas citam diversas mulheres, inclusive, se referindo em Romanos 16: à Junia como Apóstola, no entanto não diz uma palavra sequer sobre Madalena. A Legenda Áurea ( Jacopo de Varazze/1230-1298), um repositório de vidas de santos, ampliou mais ainda a confusão em torno da biografia de Madalena, pois retratou Maria Madalena como sendo a mesma Maria, irmã de Marta e Lázaro, rica e pecadora, dona de um castelo em Magdala e de propriedades em Betânia. Em 1521, Jacques Le Févre distinguiu as denominadas três Marias do seu compactado rosto único, publicou uma tese intitulada De Maria Magdalena, foi condenado pelo parlamento de Paris como herege e a Sorbonne condenou a sua tese. Lutero, Erasmo de Roterdão e Le Fèvre foram chamados de anticristos por terem a mesma ideia sobre Madalena. Temos então dois arquétipos de mulheres no Novo Testamento: Maria, mãe de Jesus, casada, pura e assexuada, modelo a ser seguido, e Madalena, sexuada, solteira, meretriz e modelo a ser expurgado, uma espécie de segunda Eva. Não estará aqui a raiz da não-ordenação de mulheres até aos dias de hoje? Grande penitência foi imposta sobre Madalena: 2 mil anos de arrependimento por um pecado sobre o qual não há comprovação nenhuma. Em 1988, o Papa João Paulo II chamou Maria Madalena de a apóstola dos apóstolos num documento oficial da Igreja e nele afirmou que na prova mais exigente de fidelidade e fé, a crucificação as mulheres tinham se mostrado mais fortes que os apóstolos». In Salma Ferraz, organização, Maria Madalena das páginas da Bíblia para a Ficção, Textos Críticos, Eduem, UEM, Maringá, Brasil, 2011, ISBN 978-85-7628-334-8

Cortesia de Eduem/JDACT