Tráfico e Tráficos. Os navios negreiros não param de passar
«(…) Num registo diferente, no interior de Angola, no início do século XVII,
alguns comerciantes africanos apenas aceitavam vender lotes completos de
escravos, sem permitir escolher os bons dos menos bons. Dessa forma, os
mercadores europeus ou os seus intermediários ficavam com alguns escravizados
que não conseguiam que fossem aceites para exportação. Nesse caso, vendiam-nos
a famíhas africanas, que os utilizavam nas
suas sementeiras. Situações de tipo semelhante, que é possível encontrar
junto de diferentes povos da costa ocidental de África com os quais os
portugueses e os outros europeus se relacionaram, mostram-nos o infundado das
teses que atribuem à Europa não apenas toda a iniciativa comercial como até invenção, do próprio tráfico negreiro,
quando só por absurdo se pode admitir que fosse possível fazê-lo sem a
complementaridade das sociedades locais. Na verdade, houve sempre africanos
como parte interessada na manutenção e crescimento do tráfico, estando nas suas
mãos todos, ou quase todos, os circuitos de obtenção e transporte dos escravizados
até ao momento da venda nos portos de embarque. E as elites das sociedades
linhageiras iriam utilizar os recursos que lhes dava a abertura ao comércio a
longa distância para consolidarem a sua hegemonia interna.
Enquanto foi possível, os europeus aproveitaram os mercados de escravos
já em funcionamento. No entanto, à medida que a procura aumentou, puderam
instalar feitorias nos lugares mais favoráveis à navegação, para onde, mercê da
capacidade de atracção das suas mercadorias se desviaram as rotas internas
tradicionais ou foram criadas rotas totalmente novas. Uma questão naturalmente
se impõe: como foi possível aos africanos
responderem a um aumento tão intenso da procura de mão de obra escrava como o
que aconteceu a partir do século XVII? Embora, quando se trata de
comércio de seres humanos, esta formulação se torne chocante, poderíamos
perguntar de outra maneira: como
reagiram os mercados internos a essa pressão do exterior? Aparentemente,
as circunstâncias que levavam à escravização continuavam a ser as mesmas de antes
da atlantização do tráfico mas algumas delas sofreram uma clara intensificação.
Vejamos quais eram as principais modalidades de produção de cativos. ' Estando generalizada, na África subsariana,
a instituição da escravatura, muitos eram os que já nasciam escravos. Atendendo
a que muitas famílias dispunham de plantéis de escravos em número
significativo, poderia parecer que estes, já descendentes de escravos, eram os
primeiros a ser vendidos. Não era isso que acontecia e, em algumas regiões de África,
sobretudo a norte do equador, as famílias eram renitentes em desfazer-se dos
escravos da casa, particularmente para
o tráfico atlântico, acabando por ser vendidos apenas quando essa má sorte atingia
os próprios donos.
Uma fonte de escravização, e que não era rara, podia ser a perda voluntária
da liberdade motivada pela pobreza e pela fome. A seca e outras calamidades
naturais, provocando situações de carência generalizada, levavam a que o
próprio prescindisse da sua liberdade em troca da sobrevivência. Foram
registados milhares desses casos por ocasião da grande seca que assolou Angola
no final do século XVIII. Era também nessas circunstâncias de privação e
penúria que havia quem vendesse familiares, nomeadamente esposas e filhos, para
escapar e fazê-los escapar à inanição. Outra forma de obtenção de escravos
tinha a ver com o pagamento de impostos e tributos: Estados vassalos de outros
mais poderosos tinham por vezes de satis fazer obrigações em cativos. Assim,
para referirmos apenas um caso, entre 1730
e 1818, o reino do Daomé pagava ao
império de Yoruba um tributo de 82 escravos por ano. Parece, no entanto, que a
maior parte dos escravizados que eram lançados no comércio a longa distância
provinha de acções de guerra ou de incursões pontuais para raptar homens e
mulheres em territórios vizinhos, actividades que eram favorecidas pela
fragmentação dos Estados e pelas diferenças linguísticas e étnicas que os
separavam». In Arlindo Manuel Caldeira, Escravos e Traficantes no império
português, O Comércio Negreiro no Atlântico durante os séculos XV a XIX, A
Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-478-9.
Cortesia E. Livros/JDACT