Missão ao alvorecer
«(…) Apresentam-se ao tenente. Fazem a continência
e esperam ordens, com apreensão. Cabo Motok, volte a cabeça e olhe para o Sul,
ordena o tenente. Com a chibata, indica um ponto e acrescenta: Onde acaba o
campo de milho, a pouco mais de um quilómetro daqui, há um ponto branco. Neste
momento, o ponto branco está imóvel. Olhe bem. Quando distinguir o ponto
indicado, diga-me... Vê-o?
-Vejo, meu tenente-responde o cabo. Ele ergueu-se na ponta dos pés e pôs as
mãos sobre os olhos. Olhando, com atenção, para o ponto indicado pela chibata,
continua: é um pobre aldeão que colhe qualquer coisa no seu campo, meu tenente.
Vejo-o muito bem. O aldeão parou e olha-nos. Ele pergunta a si próprio,
evidentemente, porque é que o observamos. Vejo-o muito claramente, é um pobre
aldeão. O feldwebel Otto Ritter, o
soldado Hans Kurt e os nove soldados romenos vêm, também, muito claramente, o
ponto branco indicado pelo oficial. Dir-se-ia um insecto branco, à beira do
campo de milho verde. É, realmente, um aldeão, que fica imóvel, a olhar para os
camiões. O aldeão segura qualquer coisa na mão. Qualquer coisa que apanhou do
chão. Exactamente como explicou o cabo Motok. O aldeão deve ter apanhado
qualquer coisa para comer, para ele ou para os animais. Neste momento, ele não
tem nada para colher nos campos, cabo Motok, diz o tenente. Os trabalhos
agrícolas terminaram e a colheita ainda não começou. Nenhum aldeão tem que
fazer no seu campo. É por isso que todos os campos estão desertos. O homem que
vêm na vossa frente é um paraquedista inimigo. Um sabotador. Um espião ou um
desertor. Não esqueçam que nos encontramos a menos de cem quilómetros da linha
da frente. O inimigo está perto de nós. A vigilância impõe-se. Somos militares.
A vida da nação e o destino de vinte milhões de romenos estão nas nossas mãos
de militares. Exclusivamente nas nossas mãos. A falta de vigilância de um
militar é um crime nacional. O tenente Fanoti é comandante militar, chefe de
todas as instituições militares e civis da região. Todos os territórios perto
da frente estão confiados aos comandantes militares e eles têm poder absoluto. Cabo
Motok, dirija-se àquele indivíduo, com os seus dois soldados. Marchará para
atacar. Mantenha a linha recta. Não afrouxem ao caminhar para ele. Avancem os
três com a arma carregada, prontos a fazer fogo. Por nada deste mundo afastem o
dedo do gatilho. Se o indivíduo fugir, abram imediatamente fogo sobre ele.
Matem-no. Tragam-mo aqui, morto ou vivo. Em conclusão: olho sobre ele e dedo no
gatilho. Execução.
O cabo Motok e os dois soldados põem-se em marcha,
arma na mão como para o assalto a uma fortaleza, em direcção ao aldeão imóvel,
branco, sozinho à beira do campo. O homem, desconfiado, não se mexe. Logo que os
camiões pararam, ele parou também. Depois, não mudou de posição, como que petrificado.
O cabo Motok e os seus dois soldados avançam. Têm os três os ombros arqueados.
O seu caminhar é pouco vigoroso. Com surpresa geral, o homem não procura nem
fugir, nem esconder-se. Os três soldados aproximam-se dele. O homem suspeito,
certamente um aldeão da região, não só não procura fugir, como está encantado
por constatar que os dois camiões pararam por causa dele, unicamente por causa dele,
no meio da estrada, e que os três soldados se incomodam para lhe falar. Não
compreende porque é que os militares não lhe ordenaram para vir ter com eles. Porque é que se incomodam eles? O
aldeão está lisonjeado. O cabo comunica-lhe a ordem do tenente. O aldeão
põe-se em marcha. Os soldados seguem-no, enquadrando-o, receando que ele se
escape. Os quatro avançam para os camiões. O aldeão sente-se cada vez mais à
vontade. É da mesma estatura que os soldados que o escoltam. E vão com o mesmo passo.
Um passo cadenciado, como os patos, o corpo inclinado para a frente. Os
quatro homens avançam como se estivessem ligados à terra; e a cada passo
arrancam um pouco desta terra, colada à sola dos seus sapatos. Dir-se-ia que o
aldeão suspeito e os soldados da escolta eram irmãos. O aldeão leva ao ombro um
saco de riscas largas, pretas e vermelhas, saco meio cheio. Enquadrado pelos
três soldados, detém-se em frente do tenente Marcel Fanoti. O aldeão tem o
sorriso nos lábios. Segura na mão um chapéu de palha, de abas largas. O homem
saúda militarmente o tenente, pondo-se em sentido. Volta a cabeça
respeitosamente e saúda os dois militares alemães, depois os quatro soldados
romenos do segundo camião. Estes levantaram o toldo que os cobria, a fim de
assistirem, com as caras assustadas, à cena. O aldeão está agora muito
sorridente, o saco ao ombro, o chapéu de palha na mão, em sentido, pés descalços
na poeira. Tem os cabelos curtos, cor de cinza, uma cara ossuda, queimada pelo
sol. Rosto oval, semelhante à argila cozida no forno. A pele das mãos e do pescoço
têm a mesma cor de tijolo velho. O homem usa uma camisa de cânhamo, branca, muito
limpa, de mangas largas, aberta no peito. A cintura está apertada numa grande
faixa de lã preta, com a largura de um palmo. As calças justas são, também, de
cânhamo branco. Os pés descalços na poeira, os calcanhares juntos, como no exército...
O tenente Marcel Fanoti fuma. Examina o aldeão que está em frente dele. O
aldeão olha, com prazer evidente, a
chibata com castão de prata, a boquilha de ouro, as luvas de fina pele
de porco e o fato de tecido fino do oficial. As narinas do aldeão, queimadas
pelo vento, palpitam de prazer: saboreia o tabaco louro fumado por Fanoti. Este
tabaco, dir-se-ia que o próprio aldeão o fuma. Estende o pescoço o mais que
pode para estar mais perto do perfumado fumo azul que sai da boquilha de ouro».
In
Virgil Gheorghiu, A Chibata, tradução de António Fernandes, Livraria Bertrand,
Lisboa.
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