O
seu enterro
«(…)
Da boca dos facultativos do paço, nem uma palavra coada a tal respeito. À uma,
o segredo profissional, naquela altura solene, mercê da hierarquia altíssima do
enfermo, inibia-os de qualquer informação precisa ou categórica. À outra, a polícia
da rainha, sobre sequestrar do paço os indiscretos, com tal arte assediava os
assistentes, que lhes faria pagar com o desfavor do trono a mais ligeira
indiscrição dalgum, cá fora, aos ouvidos da imprensa e da opinião. Compreende-se
entanto a ansiedade geral, perante aquela misteriosa agonia passeada de palácio
em palácio, quando entre os locais optimistas dos jornais do governo, e os
sombrios prognósticos dos jornais da oposição, os dois jogando os dados com os
últimos dias do rei, com o sentido no ganho das próximas eleições, um campo de
cogitações se abria, enorme e vago, aos receios de uma súbita catástrofe que
alancearia de mágoa o espírito público, ainda não preparado a ver no trono
outra cabeça que a desse bonacheirão e céptico monarca Luís.
Todos
à uma, incertos da duração dessa vida de rei, previam já o instante em que a
paralisia das pernas lhe subisse aos braços, em que a esclerose cérebro-espinhal
lhe estendesse a abolição sensorial, do ouvido aos olhos, tornando o enfermo
numa espécie d'estranho morto-vivo, paralítico e cego, gastrálgico e mudo,
consciente e delirante, alimentado por uma sonda, despejado das urinas por
outra, parindo as fezes a ferros, lictinado, hediondo, coberto de escaras, e
contaminando-se, pesadelo horrível dessa podridão vagarosa, metódica, generalizada,
atrocíssima, sem pressa, em que os tecidos e os órgãos, já decompostos, ainda
para assim dizer fingem ter vida, e em que a dor remorde o íntimo do ser continuamente,
mil vezes mais fulgurante do que no organismo íntegro, porque o supliciado tem consciência
dela, e já nem sequer pode jogar a voz p'ra se queixar!
Em
torno à cadeira de rodas em que os lacaios passeiam da alcova para o terraço,
este cadáver lúcido e nostálgico, reconstruir um drama é coisa fácil, a quem se
lembrar de Frederico II d'Alemanha. São os velhos servidores, receosos, de
perder o prestígio da corte, quando esse rei sorrir pela última vez, palidamente,
às artificiosas consolações que lhe trouxerem. São os ministros, lívidos como grilhetas,
e acossados como cães, num canto da antecâmara, a duvidar se acharão no
carácter do rei novo, aquela amável tolerância com que sempre os recebera o rei
finado. São os chefes da oposição, esfaimados por seis anos d'exílio,
circunvagando de roda ao crepúsculo real as cínicas figuras, a especular com a
impaciência febril do herdeiro do trono, cuja memória é boa, e fará presidente
do conselho o que primeiro o tratar por majestade. É a Igreja que não quer
perder o final d'acto, e a cada momento espreita à porta, impaciente, com as
sagradas vestes numa trouxa, aguardando a hora em que haja de fazer engolir ao
viajante o pão ázimo, como um bilhete de primeira classe, para a viagem das
sibéricas neves do outro mundo. E finalmente a rainha, ia a dizer a imperatriz
Frederico, soberba e escultural nas suas grandes roupas, os seus olhos
d'estátua dolorosa, a palidez de Juno despenhada, arrastando-se sem forças, de
sofá para sofá, lassa de vigílias sem conta, alucinada já de ciúmes sem
refrigério, agarrando-se a todas as vergônteas da esperança, pedindo à ciência
a ressurreição desse cadáver, prometendo a Deus magníficas oferendas; e logo
renegando Deus e renegando a ciência, ao sentir as suas lástimas quebrarem-se
d'encontro à mão de bronze do destino, que a relega, magnífica orgulhosa, à
semi-sombra duma vida subalterna, tão asfixiadora para os predomínios teatrais
da sua grande raça». In Fialho de Almeida, Carta a D. Luís sobre
as Vantagens de ser Assassinado, Assírio Alvim, Lisboa, 2010, ISBN
978-972-37-1441-8.
Cortesia
de AAlvim/JDACT