«Talvez não seja mau colocar-me de início no ponto de partida modesto
de toda a reflexão, mesmo a científica: a opinião corrente, o lugar-comum. Ora,
acerca de Oliveira Martins, se me não engano, o lugar-comum reza: autor perigoso, cheio de contradições,
nomeadamente as que- nele sacrificaram a crítica à arte, e, segundo uns, a obra
do economista à sanha demolidora, segundo outros, um autêntico pensamento
revolucionário ao gosto da acção política imediata. Aceitemos esta
visão banal; em vez de refutar uma banalidade, vale mais a pena, quase sempre,
explicá-la, o que conduz aos mesmos resultados, sem indispor o nosso
semelhante. Se o artista bulha com o crítico, em Oliveira Martins, como definir
em termos claros e distintos a arte
desse artista, a crítica desse crítico? Pois uma arte, uma crítica,
exigem caracterização, salvo para os temperamentos ingenuamente devotos e
suficientes. E, da mesma maneira, se um utopista, ou um reaccionário,
consoante as predilecções, perturbam o historiador ou o político, basta o pressuposto de existir em
Oliveira Martins um historiador, um político, estimáveis, para a gente
desconfiar das oposições sumárias. Mas, além disto, se- Oliveira Martins, que é
sob o aspecto doutrinário o mais interessante espírito da chamada geração
realista, se caracteriza por certas contradições, pelo senso das antinomias que
António Sérgio dilucidou em vários ensaios, se Oliveira Martins, homem
representativo, é contraditório, antinómico, temos de supor que nele se
reflecte ou contém eminentemente o que afinal se debatia, se contraditava na
sua geração. Pode dizer-se que, de algum modo, os grandes homens são os mais condicionados
pela sua época, porque, ou se não têm problemas vividos ou têm-se os da época;
os grandes homens são condicionados, mais do que os outros, pela sua época,
porque se condicionam a ela, porque fazem história, é fazer história significa
o reconhecer de dados positivos e agir produtivamente.
Tem-se dito que o homem é um animal racional, ou um animal religioso ou
metafísico, ou social. Mas sociais são-no as abelhas e as térmitas; em pura
metafísica pode imaginar-se, como Unamuno, que os caranguejos discutem
as raízes das equações do segundo grau, tranquilos e imperscrutáveis, sob a
carapaça; razão análoga pode, sempre em virginal metafísica opor-se às outras
definições. Só não pode duvidar-se de que o homem seja um animal superiormente histórico;
o que significa que a dignidade do homem consiste precisamente na
impossibilidade de definir o homem de sempre, porque o homem se refaz à medida
que vai tomando consciência das suas condições. Oliveira Martins foi uma
personalidade relevante, porque quis ser e soube ser do seu tempo; a sua
actualidade não reside nas soluções que achou mas nos dados com que temos de contar
para acharmos, nós, hoje, as nossas soluções, e de que ele teve a
primeira consciência. Por outrass palavras: Oliveira
Martins só pode viver em nós na medida em que se condicionou, e nos condicionou,
aos factores de um pensamento activo. A autêntica liberdade do espírito é a
consciência activa do que nos determina, do que nos limita, do que nos resiste
e do que, por isso, caracteriza a nossa reactividade.
Foi assim que Oliveira Martins nos libertou de
certos devaneios delirantes, subalternizando as pseudo-explicações rácicas e
vagamente patrioteiras na diferenciação nacional; fazendo suspeitar os factores
burgueses (entre outros móbiles sociais) da revolução do Mestre de
Avis; sublinhando o anacronismo peninsular do espírito cavaleiresco, medieval,
sob o dogmatismo jesuíta dos séculos XVII e XVIII; definindo o vector
fundamental do fontismo, a sua hierarquia dos problemas nacionais, que
consistiu no fomento agrícola e industrial, pelo barateamento do crédito, pela
pauta alfandegária inteligente, pela emancipação dos produtores, pelo apoio
técnico, à política vistosa e submissa ao imperialismo das vias-férreas, das
estradas, dos empréstimos internos e externos (parecem hoje: 1984 e 2012…)». In Óscar Lopes, Álbum de Família, Ensaios
sobre Autores Portugueses do século XIX, Reflexões sobre Herculano como
polemista, Editorial Caminho, Colecção Universitária, Lisboa, 1984.
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