O
seu enterro
«(…)
E, fatalidade dum cargo que tantos invejam como supremo pináculo das grandezas
da terra, fazendo trémulo àquela agonia do monarca, não há talvez uma única
lágrima sincera, uma lágrima só, que evaporada deixe no cadinho outro resíduo além
d'impuras coisas, ambições resvaladas, prestígios findos, favoritismos em
naufrágio, lágrima que refranger pudesse a pura essência da angústia sem
mistura, essa liquefacção terníssima da alma, que provocam no coração dos
simples, os queridos mortos que deste mundo se vão sem blasfemar. Oh, é cruel
pensar que mau grado a sincera intenção talvez de todos os comediantes daquele
drama lúgubre que finda, nenhum deles possa eximir-se à suspeita de ter vindo
ali chorar por parti-pris. Apenas a melancolia dum poderia mostrar-se como uma
coisa isenta d'egoísmo: mas esse reviravolteava em velocípede, sobre a
esplanada do paço, no dia em que os médicos tiravam das pernas de seu pai,
pedaços de tecido em gangrena.
Fecha
os olhos o rei, e o pano tomba sobre o quadro dos físicos que lhe agarram com
pinças, sob uma chuva de fenol, na carne que vem aos bocados, e sobre que já
não é possível produzir a mumificação pelos antipútridos e balsâmicos que manda
a pragmática. E porque se desarma o tablado dos aparelhos fúnebres do
cenotáfio, quando a carcaça do pobre literato vai engrossar o fumeiro real de
S. Vicente, não se persuada o leitor que o drama finda, visto como apenas se
representou ainda a primeira parte duma vibrante e grandiosa trilogia. Recompile
se pode a súmula dessa primeira grande peça histórica, que teve o palácio
d'Ajuda por cenário, e levou vinte e oito anos a representar em Portugal. Logo
no prólogo figura um rapazola loiro e bonito, bravo e leal como um cadete, que
teve d'abandonar o seu navio de guerra, quando uma noite, estando a jogar com
camaradas, lhe vieram dizer que seu irmão, o rei, tinha morrido. Nada na sua
vida de bordo atestaria as saburras selectíssimas do seu sangue, se não fora o
tratamento d'alteza que lhe davam, tanto a sua expansiva gentileza, a
cristalinidade, a graça, faziam dele um doidivanas d'escola, um jovial
fellow de convés, com a paixão das viagens, do jogo, do vinho e das
mulheres.
Em
Angola, onde esteve aguarelando palmeiras e bebendo conhac, o governador preparou-lhe uma espécie de revolta com
soldados e pretos ensaiados, persuadindo-o de ter sido ele o abafador da
sedição. Ao baccarat, muita vez lhe sucedia perder tudo, e pedir dinheiro
aos mais modestos guardas-marinhas que o cercavam. E quanto ao amor, o adorável
rapaz tanto seguia à risca os preceitos do rei Sebastião o casto, seu
parente, que até lhe imitou a aventura de que fala picarescamente o cronista: e como houvera calor nas casas da marquesa,
se desceu el-rei à rua das fermosas, de quem houve moléstia. Para o trono,
onde o assentou a morte dum rei que ia começar a ser funesto, ei-lo trazendo a
bonomia fundamental da sua Íaça, que é uma espécie d'atrofia da vontade,
complicada duma espécie de velhacaria. Entretanto a sua alegria tempera-se, a
sua impetuosidade acalma-se e desse oficial de marinha pândego e sensual, dessa
espécie d'edição anterior do infante Afonso, brota um personagem novo estudioso
pachorrento, o céptico risonho, o grande corruptor bem humorado, que estudou
nos livros a lei da reedição periódica dos caracteres, que soube amaciar as
verduras juvenis pelo convívio das artes e das letras, que aprendeu a procurar
nos homens a repercussão do mesmo ponto fraco, e a valer-se dele enfim para os
domar sem ruído, nem aparente esforço, nem precipitações, nem compromissos». In
Fialho de Almeida, Carta a D. Luís sobre as Vantagens de ser Assassinado,
Assírio Alvim, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-37-1441-8.
Cortesia
de AAlvim/JDACT