«(…) Mas Raimundo-Roger,
conde de Foix, é mais encarniçado ainda que seu soberano Raimundo VII, conde de
Tolosa. Julguem por si mesmos. Em primeiro lugar, vive praticamente rodeado de
hereges. E, de cara aos privilegiados da Igreja católica e seus clérigos, não
se sente em modo algum complexado por isso, coisa que horroriza ao Pierre des
Vaux de Cernay, cronista decididamente católico da Cruzada. De modo que, ao
possuir a jurisdição de Pamiers junto com o abade de Saint-Antonin, faz todo o
necessário para enojar a este e lhe obrigar a renunciar. Assim, por exemplo,
autoriza a dois cavaleiros de seu séquito a instalar a sua anciã mãe na abadia.
Todavia, como tal senhora é uma perfeita bastante conhecida, os monges
de Saint-Antonin jogam-na dali sem contemplações, como uma emprestada daquela
época. Diante disto, um dos dois irmãos degola, sobre o altar, o cónego que
tinha golpeado a sua mãe. Continuando, alertado pelos dois cavaleiros,
Raimundo-Roger acode ao Saint-Antonin com seus homens de armas e seus oficiais,
joga ao abade e aos cónegos, faz demolir parte da capela, o dormitório e o
refeitório, e transforma a abadia em fortaleza. No curso do inevitável saque da
capela, os homens de armas quebram um crucifixo de madeira maciça, e utilizam
suas lascas como mão de morteiro para socar as especiarias de suas comidas. No
outro dia, os cavaleiros do séquito do Raimundo-Roger desprendem da cruz a um
Jesus de tamanho natural, vestem-no com uma cota de malha e tomam como alvo na
justa chamada do estafermo, jogo de
armas reservado aos fidalgos e cavaleiros nobres e a cada lance gritam que se redima.
Denomina-se estafermo a um manequim de madeira,
montado sobre um eixo giratório situado sobre uma base, que tinha amarrado no
braço esquerdo, estendido, um escudo de torneio, e no braço direito, também
estendido, um comprido e sólido pau. Se o justador golpeava torpemente com sua
lança, e ao galope, o escudo do manequim, e não se agachava a tempo sobre o
pescoço do cavalo, o manequim girava sobre si mesmo sob o efeito do choque, e
atirava automaticamente um paulada na nuca ou na espinha dorsal do torpe
cavaleiro. Sem comentários. Cavar um orifício e introduzir um pau a modo
de eixo na base de um Cristo de tamanho natural, para convertê-lo logo num
teatro de fantoches irrisório, que servia de alvo em um jogo de armas, demonstra o pouco caso que os nobres crentes cátaros faziam do Jesus da
História. Quanto a seus apostrofes de que se
redimisse o personagem rebaixado à categoria de alvo, não podia tratar-se
de resgate algum, já que o jogo do
estafermo não era um torneio. É fácil compreender o carácter insultante de
semelhante apostrofe de cara ao personagem histórico assim representado. Por
outra parte, quando os cátaros falam do Espírito Santo, esta expressão designa
uma entidade do panteão gnóstico, mas, de modo algum uma emanação eterna
nascida das relações essenciais entre o Pai
e o Filho.
Desta utilização
prudente da terminologia cristã ordinária numa linguagem esotérica e secreta,
próprio do catarismo, ficava uma prova peremptória, testemunhada pelas actas
dos interrogatórios: é o facto de designar a sua própria Igreja, constituída a
única e interiormente pelos perfeitos, sob o nome de Virgem Maria. Quem ia supor, ao ouvir
por acaso esta expressão, que ela designava, em realidade, o bastião interior da heresia? Vejamos uns textos definitivos
a respeito:
Negam, do mesmo modo, que a bem-aventurada Virgem Maria tenha sido a verdadeira
mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, e que fosse uma mulher de carne e osso. A
Virgem Maria, dizem, é sua seita e sua ordem, quer dizer, a verdadeira penitência
casta e virginal, que engendra aos filhos de Deus, assim que estes são iniciados
em tal seita e tal ordem. Desta afirmação quanto ao engendramento dos filhos de Deus por essa Virgem Maria, puramente convencional,
desprende-se a conclusão de que todos aqueles a quem a Igreja cátara engendra
sob tal nome se tomam ipso facto em idênticos
e semelhantes ao Jesus Cristo. A partir desse momento, a noção cristã de um
único redentor fica aniquilada por essa multiplicação ilimitada. Esta conclusão
conduz a outra, ou seja, que o Evangelho de São João, o único utilizado pelos
cátaros do versículo um até ao dezassete, não é mais que um truque, já que o seu
ensino oral nega, como acabamos de ver, a unicidade do Verbo Encarnado,
afirmado por tal evangelho.
Observaremos, por outra parte, que frequentemente se confundiu aos vaudois
com os cátaros. Os primeiros chocaram frequentemente com os segundos, já que se
desenvolveram nas mesmas regiões e nas mesmas épocas. Pois bem, os vaudois,
igual aos cátaros, estavam divididos em perfeitos e em crentes. Esta identidade
das palavras que os designavam faz que frequentemente se considerem, equivocadamente,
os rituais vaudois como rituais cátaros, e que se pode supor, de boa fé,
que os cátaros eram cristãos. Mas unicamente o eram os vaudois, no sentido absoluto
do termo, embora sem ser católicos. Em troca, tal como já vimos, os cátaros não
o eram absolutamente. Para qualquer demonstração sobre o que antecede,
remetemos à Practica do
inquisidor Bernard Gui. Provavelmente este é o mesmo caso no qual concerne ao
Jesus Cristo. Charles Guiguebert demonstrou que as seitas esotéricas judias de
antes de nossa era invocavam a uma entidade chamada Jeshuah (Jesus em
hebreu). Ainda não se tratava, para eles, do Jesus da História, evidentemente.
Pois bem, Jesus Cristo quer dizer, literalmente, Salvador Sagrado (do
hebreu Jeshuah e do grego Khristos). Por outra parte, todo
cátaro que recebesse o consolamentum
devia pronunciar antes, em voz alta, a fórmula da abrenuntiatio, mediante a qual renegava solenemente do baptismo
de água recebido em seu nascimento, declarava não acreditar nele e renunciar a
ele. Assim ficavam apagadas ante seus olhos a cruz que tinha marcado sua fronte
e as unções que lhe tinham seguido». In Robert Ambelain, Jesus ou le mortel
secret des Templiers, 1970, Éditions Robert Laffont, Paris, O Segredo Mortal
dos Templários, Ediciones Martinez Roca, 1982, Barcelona, ISBN 84-270-0727-2.
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