«(…) Uma saleta, e, mais ao fundo, o salão onde esperava a corte: o
mais visível, o Valido, mas visível também a Rainha, linda e maliciosa, e
também um pouco brincalhona, cujo rosto contrastava com a seriedade que a
rodeava. O Rei dirigiu-se para ela, cumprimentou-a e ofereceu-lhe o braço; mas
o seu rosto não deixava de parecer esparvoado, e os presentes começaram a cochichar.
A caminho da capela, ouviam-se os registos do órgão, e as vozes concertadas do
coro. À frente do cortejo, quatro acólitos vestidos de vermelho e branco faziam
diabruras com os incensários, e aquele pouco fumo oriental despertava nos cortesãos
a sua sensualidade secreta. A capela, que vinha do avô do Rei, era simples e
imponente. A corte mal lá cabia. Foram-se instalando como puderam, de acordo com
as suas categorias. Os condes e os viscondes ficavam de pé: entre eles o da
Peña Andrada, muito aperaltado, vestido à inglesa, rutilante. Toda a gente
parecia conhecê-lo, e cumprimentavam-no com sorrisos. Alguém sussurrou para o
lado: Dizem que foi ele que ontem à
noite foi às pu… com o Rei. Pois o Senhor pagar-lho-á na sua Glória.
Dizia a missa o padre Villaescusa, e o Núncio de Roma ocupava um
cadeirão no presbitério. Talvez fosse o próprio Núncio o mais surpreendido com
o espírito críptico e em certo sentido tétrico do sermão do capuchinho, que
ninguém percebeu, e, menos do que ninguém, o Rei, sempre com o olhar perdido
sabe Deus em que trevas e a expressão de basbaque, que não o tinha abandonado.
A única novidade era que, de vez em quando, dirigia o olhar para a Rainha, mas
para o sítio onde devia estar o seu decote, cuidadosamente tapado à espanhola
por veludos requintados e jóias discretas. À Rainha, e sua primeira dama dava-lhe
de vez em quando uma cotovelada: Majestade,
o Rei está a olhar para si, mas, quando a Rainha voltava a cabeça, o olhar
do Rei já se tinha desviado pare as silhuetas das suas recordações. Quer saber se a Rainha tem mamas,
exclamou um bobo malicioso, que recebeu na nádega o castigo de um agudo
beliscão. Quem se atreverá a
perscrutar os mistérios da vontade divina?, troava o padre Villaescusa.
Os que o tentaram, o Senhor castigou-os com a loucura ou a morte. Ele disse: Eu sou aquele que sou, e para que não turvássemos
a pureza da sua consciência, deixou-nos o seu decálogo: ... não matarás, não fornicarás, não cometerás
adultério.... Dirigiu-se aparentemente a cada um de nós, mas em cada um de
nós está representada a humanidade. E assim nos deixou, para assombro de todos
e exercício de humildade, o mistério das responsabilidades. Dirige-se a cada um,
mas a responsabilidade é partilhada por todos. Se peca o pai, paga-o a família;
se o Rei, o seu povo; se o papa, toda a cristandade...
Quando falou de fornicar, ninguém se deu por atingido; quando de
adultério, muitas damas sentiram-se mais inocentes do que aparentavam, mas
quando asseverou que a família pagava os pecados do pai, o Valido pensou na sua
mulher, que estava ali, a seu lado, com um sorriso feliz e os olhos
semicerrados. Pensaria, como sempre,
nos prazeres da cama? Havia tempo que o Valido se tinha convencido pelos
seus próprios meios intelectuais, algo misturados de temor, é certo, de que a
esterilidade do seu casamento se devia ao pendor da esposa para os jogos
conjugais: enroscava-se-lhe na cama e provocava-o, arregaçando a camisa de
noite mais acima do que o indispensável. Mas, por outro lado, o seu confessor
tinha-lhe dito que nada daquilo era pecado. Ah,
que missa aquela! O Núncio olhava para o pregador e dizia em voz quase
audível: ...Mas que diz este energúmeno?
Os presentes encontravam nas palavras do padre Villaescusa motivos para
declinarem tormentos de consciência. E o conde da Peña Andrada tinha-se
ausentado da capela antes da elevação, embora sem fazer ruído: tinha-se
escapulido como uma enguia e voltado depois ao seu lugar, ao terminar a
comunhão, como se nada fosse.
Ao conde da Peña Andrada, no salão, depois da missa, quando fazia a
reverência ao Rei, este mandou-o cobrir-se, para grande estupor da corte
inteira e, sobretudo, do Valido. Mas não foi esta grande surpresa que se
comentou nas conversas do átrio de São Filipe, mas sim que Sua Majestade, em
voz baixa e cautelosa e com certa dissimulação, tivesse sussurrado à
camareira-mor da Rainha, a pessoa mais próxima dela segundo o protocolo: Diz a Sua Majestade que quero vê-la nua.
- Vossa Majestade está louco».
In
Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado
(Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho, 1992,
ISBN 972-21-0708-9.
Cortesia da Caminho/JDACT