quinta-feira, 20 de março de 2014

O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval Jacques le Goff. «Não é por acaso que o maravilhoso tem um papel tão grande nos romances de corte. O maravilhoso está profundamente ligado a esta procura da identidade individual e colectiva do cavaleiro idealizado»

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O Maravilhoso no Ocidente Medieval
«(…) Dado que estas heranças são heranças que continuaram, o cristianismo encontrou-as diante de si ao longo de toda a sua existência. A título de hipótese de partida, parece-me que uma periodização das atitudes dominantes dos dirigentes intelectuais e espirituais do Ocidente medieval permite captar a evolução dos modos de colocar-se em relação ao maravilhoso. Durante a alta Idade Média, mais ou menos do século V ao século XI, é extremamente difícil adoptar, no campo da cultura, uma cronologia muito pormenorizada. Em geral, creio poder dizer-se para este período que se verificou uma espécie, se não de rejeição, pelo menos de repressão do maravilhoso. No decurso dos meus estudos ocupei-me da hagiografia da alta Idade Média, em particular da hagiografia merovíngia, mais ou menos ao mesmo tempo em que a estudava, num trabalho muito mais aprofundado, o colega checoslovaco Frantisek Graus, e ambos chegámos sensivelmente às mesmas conclusões. Para quem vai à procura de folclore, os textos hagiográficos da alta Idade Média são, pelo menos a uma primeira análise, muito frustrantes, e se caímos na ilusão de poder recolher neles uma grande cópia de dados etnológicos, o balanço acaba por ser magro, à primeira vista. O que neles encontramos é essencialmente a preocupação por parte da Igreja de transformar, até dar-lhe um significado de tal modo novo que o fenómeno que temos perante nós já não é o mesmo, ou de ocultar e eventualmente até destruir aquilo que para ela representava um dos elementos quiçá mais perigosos da cultura tradicional, por ela globalmente qualificada como pagã: o maravilhoso, que exercia sobre os espíritos uma evidente sedução, que constitui uma das suas funções na cultura e na sociedade.
Nos séculos XII e XIII, pelo contrário, parece-me encontrar uma irrupção do maravilhoso na cultura dos doutos. Não me empenharei aqui a exprimir uma valoração nem a dar uma explicação do fenómeno. Mas, globalmente, penso que se pode dizer duas coisas. Por um lado, retomo as hipóteses de Erich Köhler sobre a literatura cortês ligada aos interesses sociológicos e culturais de uma faixa social ao mesmo tempo em ascensão e já ameaçada; a pequena e média nobreza, a cavalaria. É o seu desejo de opor à cultura eclesiástica ligada à aristocracia não já uma contracultura, mas sim uma cultura diferente, que sente como mais condizente com a sua índole e da qual pode fazer mais tranquilamente aquilo que quer, que a leva a chegar até uma reserva cultural existente, ou seja, àquela cultura oral de que o maravilhoso é um elemento importante. Não é por acaso que o maravilhoso tem um papel tão grande nos romances de corte. O maravilhoso está profundamente ligado a esta procura da identidade individual e colectiva do cavaleiro idealizado. O facto de as provas do cavaleiro passarem por toda uma série de maravilhas, maravilhas que ajudam (como certos objectos mágicos) ou maravilhas que é preciso combater (como os monstros), levou Erich Köhler a escrever que a própria aventura, representada pela valentia, pela procura da identidade por parte do cavaleiro no mundo da corte, é em última análise ela própria uma maravilha.
Por outro lado, o que a meu ver pode explicar a irrupção do maravilhoso não é apenas a força da sua pressão, mas sim o facto de que a Igreja já não tem razão, como de facto tinha na alta Idade Média, para levantar barreiras contra o maravilhoso. Ele é agora menos perigoso, a ponto de a Igreja poder já domesticá-lo, recuperá-lo. E o encontro entre essa pressão proveniente de uma certa base laica e a relativa tolerância da Igreja que explica a irrupção do maravilhoso na época gótica. A terceira fase é um pouco diferente, porquanto embora permaneça sempre fundamental uma explicação de tipo sociológico, o que permite defini-la são sobretudo considerações mais propriamente literárias e intelectuais. É aquilo a que eu chamei a estetização do maravilhoso. O segundo problema que me ponho é o do papel do maravilhoso dentro de uma religião monoteísta. Neste campo a investigação está bem longe de estar concluída. Muito trabalho resta ainda por fazer, mesmo só para se conseguir uma boa base dos dados. Creio no entanto poder determinar, em particular para o período central, séculos XII-XIII, e sobretudo a nível de vocabulário, uma diversificação no mundo do sobrenatural que permite situar melhor o maravilhoso em relação à religião cristã». In Jacques le Goff, Il meraviglioso e il quotidiano nell’occidente medievale, Gius, Laterza, 1983, Roma, O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval, Edições 70, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-44-1563-5.

Cortesia de E70/JDACT