quinta-feira, 6 de março de 2014

Ensaio sobre o Absurdo. O Mito de Sísifo. Albert Camus. «Diante de tais contradições e tais obscuridades, é preciso acreditar, consequentemente, que não há nenhuma relação entre a opinião que se pode ter sobre a vida e o gesto que se faz para deixá-la? Chego a ironizar: ‘trata-se de maioria (de ladinos…)’».

jdact e Cortesia de wikipedia

O absurdo e o suicídio
«(…) O assunto deste ensaio é precisamente essa relação entre o absurdo (da cessação do CPD) e o suicídio (que os políticos pretendem com os mais idosos), a medida exacta em que o suicídio é uma solução para o absurdo. Pode-se tomar por princípio que, para um homem que não trapaceia, o que ele acredita verdadeiro deve-lhe pautar a acção. A crença na absurdidade da existência deve, pois, lhe dirigir o comportamento. É uma curiosidade legítima se indagar claramente, e sem falso pateticismo, se uma conclusão de tal ordem exige que se abandone o mais que depressa uma condição incompreensível (retirar o CPD?). Refiro-me aqui, é claro, a homens dispostos a estarem de acordo consigo mesmos (não há coragem…). Apresentado em termos claros, esse problema pode parecer ao mesmo tempo simples e insolúvel. Mas se supõe erroneamente que problemas simples suscitam respostas que não o são menos e que a evidência implica evidência. A priori, e invertendo os termos da questão, assim como alguém se mata ou não se mata, parece só haver duas soluções filosóficas, a do sim e a do não. Isso seria belo demais. Mas é preciso incluir a parte daqueles que, sem consumar interrogam sempre. Mas, chego, aqui, a ironizar: trata-se de maioria (de ladinos…). De igual modo, vejo que os que respondem não podem agir como se pensassem sim. Com efeito, se concordo com o critério nietzschiano, eles pensam sim de um modo ou de outro. Ao contrário, acontece muitas vezes que aqueles que se suicidam estavam convencidos do sentido da vida (tinham a ilusão dos cravos…). Tais contradições são constantes. Pode-se mesmo dizer que elas nunca foram tão vivas quanto neste ponto em que a lógica, inversamente, parece tão desejável. É um lugar-comum comparar as teorias filosóficas com o comportamento daqueles que as professam. Mas é preciso ressaltar que, entre os pensadores que não admitiram um sentido de vida, com excepção de Kirilov, que pertence à literatura, de Peregrinos, que se origina da lenda, e de Jules Lequier, que aventa a hipótese, nenhum conciliou sua lógica a ponto de recusar sua vida. Por zombaria, menciona-se muito Schopenhauer ao fazer o elogio do suicídio ante uma mesa bem fornida. Aí não há nenhum motivo para brincadeira. Esse modo de não levar a sério o trágico não é tão grave, mas acaba por julgar um homem.
Diante de tais contradições e tais obscuridades, é preciso acreditar, consequentemente, que não há nenhuma relação entre a opinião que se pode ter sobre a vida e o gesto que se faz para deixá-la? Nada de exageros nesse sentido. No apego de um homem e/ou mulher à vida há alguma coisa de mais forte que todas as misérias do mundo. O julgamento do corpo vale tanto quanto o do espírito e o corpo recua ante o aniquilamento (dos políticos de meia…). Adquirimos o hábito de viver antes de adquirir o de pensar. Nessa corrida (proletários uni-vos) que todos os dias nos precipita um pouco mais para a morte, o corpo mantém esta vantagem inalterável. Enfim, o essencial dessa contradição se acha no que denominarei a escapada por ser, ao mesmo tempo, um tanto menos e mais que o entretenimento no sentido pascaliano. A escapada mortal que constitui o terceiro tema deste ensaio é a esperança (basta! Fora!). A esperança de uma outra vida que é preciso merecer ou a trapaça dos que vivem não para a própria vida mas para alguma grande ideia que a ultrapassa ou a sublima, lhe dá um sentido e a atraiçoa. Assim, tudo contribui para embaralhar as cartas (da cessação do CPD). Não é à toa que até agora fizemos trocadilhos e fingimos acreditar que recusar à vida um sentido conduz necessariamente a declarar que ela não vale a pena ser vivida (deseja isso, senhor puridade?). Na realidade, não há nenhuma correspondência obrigatória entre esses dois julgamentos. Apenas é necessário se recusar a se deixar perder no meio das confusões, das dissociações ou inconsequências (da sua utopia de Erasmo?, não acredito, falta visão) até o momento apontadas. É preciso separar tudo e ir directo ao verdadeiro problema. Uma pessoa velhinha/velhinho não se mata porque a vida não vale a pena ser vivida, eis sem dúvida uma verdade, improfícua, no entanto, pois não passa de um truísmo. Mas esse insulto à existência (~ 600€), esse desmentido em que ela é mergulhada provém do facto de ela não ter nenhum sentido? Se a sua absurdidade exige que se lhe escape pela esperança ou pelo suicídio, eis o que se precisa clarear, perseguir e ilustrar, afastando tudo o mais. É o absurdo que domina a morte: é preciso dar a este problema precedência sobre os outros, fora de todos os métodos de pensamento e dos jogos do espírito desinteressado. Os matizes, as contradições, a psicologia que um espírito objectivo sempre consegue introduzir em todos os problemas não têm lugar nessa pesquisa e nessa paixão. O que aí é necessário é tão-somente um pensamento injusto, isto é, lógico. Isso não é fácil. É sempre cómodo ser lógico. É quase impossível ser lógico até o fim. Os homens que morrem por suas próprias mãos seguem assim até ao fim a inclinação do seu sentimento. A reflexão sobre o suicídio me dá, então, a oportunidade de tratar do único problema que me interessa: existe uma lógica até para a morte? É algo que eu só posso ficar sabendo se perseguir, sem paixão desordenada, e apenas sob a luz da evidência, o raciocínio cuja origem assinalo aqui (a cessação do CPD para os mais necessitados e que estão em lares). É o que chamo um raciocínio absurdo. Muitos chegaram a começá-lo. Não sei se se contentaram com isso.
Quando Karl Jaspers, ao mostrar que era impossível fazer do mundo uma unidade, escreve que Essa limitação me conduz a mim mesmo, aí onde eu não tenho como me livrar, um pouco antes, de um ponto de vista objectivo que só faço representar, aí onde nem eu mesmo ou a existência de outrem já não pode se tornar objecto para mim, evoca, além de tantos outros, esses lugares desertos e sem água onde o pensamento atinge os seus confins. Além de tantos outros, sim, não há dúvida, mas sob que pressões para se livrarem disso! A essa última volta, em que o pensamento vacila, muitos homens ou mulheres chegaram, e entre os mais humildes. Esses, então, renunciavam ao que tinham de mais caro e que era a sua vida. Outros, príncipes diante do espírito, abdicaram também, mas foi no suicídio de seu pensamento, em sua mais pura revolta que o fizeram. O verdadeiro esforço, ao contrário, é de não ceder o tanto quanto possível e examinar de perto a vegetação barroca desses lugares distantes. A perspicácia e a tenacidade são espectadores privilegiados para o jogo inumano em que o absurdo, a esperança e a morte se alternam nos seus lances. O espírito pode então analisar as imagens dessa dança ao mesmo tempo elementar e subtil, ilustrando-as e revivendo-as ele próprio antecipadamente». In Albert Camus, O Mito de Sísifo, Ensaio sobre o Absurdo, Livros do Brasil, ISBN 978-972-38-2759-0.

Cortesia de LBrasil/JDACT