Vidas são Vidas
«(…) Não se zangue! Mas é assim: que mais podemos ser umas do que
outras? Nem o Demónio já quer nada co'a gente, que até os demónios gostam mas é
de outros corpos… Era o seu antigo espírito galhofeiro ainda apontando. Voltava
a Pedro: Corpos de gente nova: como o do senhor Pedro! O senhor Pedro é que tem
de se precatar do Mafarrico. Fraquinho vinha ele, não se pode dizer outra
coisa. Mas eu sempre na minha: Aquele não no há-de levar tão cedo a Matreira,
arreda lá! Um rapazão daqueles há-de poder mais que a doença. Agora se o menino
Lelito não aporfia, até contra a opinião do senhor doutor… Deu uma enérgica
tapona na boca; e, dessa vez, recolheu ao silêncio. Sentira que estava dizendo
qualquer coisa de inconveniente. Com efeito, se a própria vinda de Pedro
chegara a levantar dificuldades, a sua instalação na casa de Azurara para um
tratamento demorado não fora levada a cabo sem resistências. Logo de entrada
pusera Dr. Laje o problema do contágio: Mesmo com todos os cuidados, havia
risco. Tanto mais, que imediatamente Angelina dera mostras de se querer fazer
enfermeira do doente. Não deixara de surpreender, tal atitude de Angelina. Por
outro lado, o que se não poderia esperar de aquela
rapariga? Mas era de constituição delicada, saúde caprichosa:
porventura campo favorável ao desenvolvimento duma doença como a que se
propunha tratar. Depois, seriam aqueles ares de Azurara os melhores para um
doente de tal natureza? A proximidade do mar, que em noites de tempestade, com
portas e janelas cerradas, ainda se fazia ouvir por toda a casa, parecia
indicar o contrário. Sem que Pedro sequer suspeitasse tais debates, muito
insistentemente fora discutida a hipótese da sua transferência para a quinta de
Retorta, que os pinhais defendiam. Uma enfermeira profissional seria mandada
vir, que aí ficaria ao seu serviço. Tal era a opinião do Dr. Laje, e certamente
a mais sensata; como era a de D. Violante Graça, já tão familiar na casa que se
tornara como de família. As hemoptises, os acessos de tosse, as temperaturas de
Pedro, todo esse aparato lugubremente espectacular dos primeiros tempos, não
faziam senão reforçar tal opinião. O seu próprio aspecto, nesses primeiros
tempos em que ainda parecera ter piorado, era na verdade inquietante: Com a
barba ruiva muitas vezes por fazer, as olheiras fundas, a cabeleira revolta nas
almofadas, a pele esbranquiçada, às manchas, quase só recobrindo os ossos da
caveira, Pedro parecia não ter senão cabelos, olhos e sardas. Também se não
deixara de considerar (e aqui tinha palavra a experiência de D. Violante) que a
instalação dum homem novo, mesmo em tal estado, numa casa onde só havia velhas e
duas raparigas, pois Lelito fazia inesperadas ausências, não deixaria de
provocar o reprovativo espanto do meio azurarense. Oh, decerto seria caso para
aguçar a curiosidade e a língua da D. Revocata, da D. Lucinda Mendonças, do
melífluo Ilídio Esteves e seu inseparável o jovem Sant'Ana, da D. Almerinda
Freitas, de toda a Associação das Mães Cristãs, em suma! A esta puritana
associação pertenciam não só as referidas e restantes senhoras bem
de Azurara, como, pode dizer-se, a título de componentes de honra, os
citados elementos masculinos.
Pois apesar de tudo, prevalecera a opinião de Angelina. Secundada pela
de Lelito? Sem dúvida. Repetindo, embora, que em tal matéria pertencia ao Dr.
Laje o supremo arbítrio, nem sequer se esforçara Lelito por esconder o seu
íntimo desejo, que era ter o amigo sob o mesmo tecto. De qualquer maneira o
teria: pois até já resolvera acompanhar Pedro, no caso de ter ele de ir para Retorta.
Aí se aproveitaria dum mais íntimo contacto com a Natureza. Tanto melhor, se
não fora preciso deixar aquelas paredes de Azurara! A este debate se mantivera
completamente alheia Maria Clara, que nem chegara a ver o hóspede senão uma
vez, de relance. Toda amarfanhada pela sua dramática viuvez, mal podia, ainda, comparticipar
da vida da casa. Todos, aí, compreendiam isso. Todos continuavam a rodeá-la de
solicitudes, e ninguém, de momento, pensaria em a consultar sobre o quer que
fosse. Todos quereriam poder distraí-la do seu triste caso, arrancá-la a esse quarto
onde vivia encerrada noite e dia. Ao mesmo tempo, admitiam que era demasiado
cedo. Em vão Angelina procurava rezar com ela, pensando que na oração poderia
ela achar um seguro refúgio. Maria Clara ficava fria, seca, longínqua,
murmurando, por um comprazer mal consciente, palavras a que não ligava sentido nem
esperança. E às vezes, involuntariamente, dava mostras de enfastiada com a
presença de Angelina ou qualquer outra pessoa. Nisso a contrariavam, temendo-se
quase de a deixarem sozinha. De noite nunca o ficava, dormindo com Angelina no
mesmo quarto. A companhia da ti Pinheiro ainda era, durante o dia, a que
parecia importuná-la menos, não lhe exigindo nenhum constrangimento. Mas ti
Pinheiro tinha de se manter calada, o que não sem sacrifício acabara ti
Pinheiro por compreender. Os bilros saltitavam nos dedos, estralejavam no pique
da velha rendilheira.
E Maria Clara ali estava na sua cadeira de braços, às vezes com um
bordado esquecido no regaço, as mãos caídas no bordado, e olhando pela janela
como se apenas a seduzisse aquela mancha mais luminosa. Quase nunca a viam
agora chorar. Se chorava, era furtivamente, ou porventura sem saber. O espanto
do que lhe acontecera parecia continuar a ser o seu estado, ou sentimento, mais
permanente; não menos sombrio agora, não menos profundo, pelo facto de muito
menos expansivo. E assim Pedro ficara instalado na casa de Azurara para o tempo
que fosse preciso. Tempo?... Que felicidade, deixar correr o tempo sem se
lembrar dele! Ocupava o quarto de Lelito, que provisoriamente passara a ocupar
o que fora dos pais. Como não dera pelo problema da sua instalação na casa,
também quase não dava pelos perigos a que se obrigavam os que o tratavam e serviam;
especialmente Angelina, sempre tão frequente e solícita em redor do seu leito!
Nesse particular compartilhava Pedro de certa inconsideração popular, que a
tais perigos de contágio, como a outros, responde há-de ser o que Deus quiser. Não só a poderosa fé ingénua,
como também a inconsciência da ignorância e a impossibilidade de medidas
higiénicas na promiscuidade a que os obriga a miséria, levam os pobres a essa
posição de quase confiança, quase indiferença, quase desespero ou fatalismo.
Como que estranho ao problema da existência ou providência de Deus, nem por
isso deixava Pedro de muitas vezes pensar: Há-de
ser o que Deus quiser! E pensar assim dava-lhe uma espécie de sossego: Atirando
lá para o Desconhecido a solução de qualquer caso, sentia-se
irresponsabilizado; até vagamente protegido. No caso presente, mais ou menos
confiava em que nenhum Deus pagaria com mal o bem que a ele, Pedro, lhe faziam.
Sim, mais ou menos: Para os simples com quem, por vezes, se irmanava, Deus era
uma Pessoa bastante próxima, quase familiar, apesar de toda-poderosa e nem
sempre compreensível nos seus desígnios». In José Régio, A Velha Casa,
Vidas são Vidas, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003, ISBN
972-27-1258-6.
Cortesia de INCM/JDACT