Apologia e crítica contemporâneas da expansão
«(…) Os primeiros textos interessantes de apologia à expansão ultramarina
devem-se à escrita ou transmissão do rei Duarte I, que teve de tomar decisões
quanto às iniciativas do Infante Henrique relativamente às explorações atlânticas
e quanto ao prosseguimento das conquistas no Magrebe, e a Zurara, que subscreve
as primeiras crónicas das conquistas e razias no Norte de África e do reconhecimento
do Atlântico até à Guiné. E será precisamente, e mais tarde, na sua Crónica
de D. Duarte, que Rui de Pina fará ressaltar sérias críticas à
temeridade henriquina, e também algo eduardina, quanto à expedição a Tânger. No
Leal
Conselheiro proclama-se o dever de fazer guerra [aos Mouros] para
tornar suas terras à obediência da Santa Madre Igreja e pôr em liberdade todos
aqueles que à nossa fé quiserem vir, que livremente o possam fazer [...]; e
adverte-se que, uma vez tomada uma decisão bélica pelo rei e seu Conselho, não
convém mais escoldrinhar, mas, sem embargo, matar, ferir e roubar, segundo por
seu rei e senhor for ordenador. Estas normas de Duarte I estão, no
essencial, coonestadas por deliberação de um Consistório em resposta a uma
questão levada junto do papa pelo conde de Ourém, embora Rui de Pina transcreva
certas condições cautelares e morais dessa deliberação que de facto não foram
observadas na expedição a Tânger. Este cronista, que aliás escreve acerca de um
desastre militar já distante e anterior ao próprio nascimento, responsabiliza
claramente o Infante Henrique por uma decisão precipitadamente agenciada nos
bastidores da Corte, impopular e contrária aos pareceres, em conselho, do
Infante Pedro, do conde de Barcelos e às ponderosas razões de siso (embora contrapesadas por outras de
honra e de cavalaria) aí eloquentemente aduzidas pelo Infante João. Acerca do
temerário entusiasmo do infante Henrique em matéria de guerra aos Mouros não
restam quaisquer dúvidas: num seu conselho escrito que Duarte I registou no
chamado Livro da Cartuxa, diz o infante Henrique que a honra inerente a
essa guerra he a mayor honrra que ha
neste mundo, e em respeito desta as outras sam qasy nom aujdas por honrras,
aplicando a este respeito uma conhecida frase de Cristo: eu non vym meter paz mas cuytelo.
Zurara, ligado por duas comendas à Ordem de Cristo, persona grata de Afonso o Africano, cronista oficial dos primeiros
grandes feitos de conquista em África e do início da expansão atlântica, apresenta
o Infante Henrique de tal maneira que os grandes actos praticados em sua honra
e serviço o são, também, inquestionavelmente, em serviço de Deus, e
instrumentalmente em honra e proveito dos seus agentes directos. Já ao
salientar o papel do Infante na conquista de Ceuta considera que tam maravilhosas vertudes não lhe
parecem senam de algüu homem trazido a
este mundo pera espelho de todolos vivos. O conhecido retrato da Crónica
dos Feitos da Guiné, cuja redacção inicial, certamente retocada mais
tarde, fora entregue ao rei ainda em vida do infante Henrique, é o de um
cavaleiro ideal, corajoso, infatigável, extremamente devoto, virgem até à
morte, dado à criação de bons servidores, empenhado em altos empreendimentos
aparentemente inexequíveis e com uma fleumática vontade movida a algüa certa fim aos homeës noom conhecida. Graças à
sua perseverança foram descobertos, principiados a povoar e a arrotear, os
arquipélagos da Madeira e dos Açores, e chegara-se até ao rio senegal, então
identificado como braço ocidental do Nilo e portanto tido como via de acesso ao
reino de Preste João. Na viagem decisiva para o reconhecimento de tal rio, um
mareante mais entusiasta chega a propor que a rota vá mesmo até ao Paraíso
Terreal, que era então imprecisamente localizado a montante dos grandes
rios da Índia asiática, como ainda Os Lusíadas indicam a dado passo.
Seja como for, e até à consolidação do Vice-Reino oriental sob uma
autoridade régia, o Infante Henrique personificará uma expansão doutrinariamente
concebida em termos cavaleirescos senhoriais, à qual ainda em sua vida é
prestada homenagem na Bula Romanum Pontifex, de 1455, proclamada solenemente na Sé de
Lisboa perante representantes de todas as comunidades estrangeiras, que assegura
à Coroa portuguesa o senhorio de Ceuta e o exclusivo da conquista e comércio
desde os cabos Bojador e não até ao Índico, designação ainda geograficamente imprecisa.
No Esmeraldo...,
Duarte Pacheco Pereira, que é caracteristicamente um cavaleiro-mercador atento
aos valores económicos, mas a título de serviço de dilatação da fé, vê ainda o
grande empreendimento henriquino como uma revelação que bem parece vir per novo mistério de Deus e nom per outro modo temporal
e mantém a tese do rei Duarte I sobre o direito de reconquista do Magrebe
arrebatado pelos Muçulmanos oito séculos antes, tese depois várias vezes
invocada nomeadamente na Exortação da Guerra vicentina dedicada à expedição de
Jaime de Bragança contra Azamor em 1513».
In
Óscar Lopes, A Busca de Sentido, Questões de Literatura Portuguesa, Editorial
Caminho, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0986-3, Conferência proferida no Congresso Le
Caravelle Portughesi sulle vie delle Indie, Milão, 1992.
Cortesia de Caminho/JDACT