domingo, 2 de março de 2014

Questões de Literatura Portuguesa. A Busca de Sentido. Óscar Lopes. «Graças à sua perseverança foram descobertos, principiados a povoar e a arrotear, os arquipélagos da Madeira e dos Açores, e chegara-se até ao rio Senegal, então identificado como braço ocidental do Nilo»

jdact e wikipedia

Apologia e crítica contemporâneas da expansão
«(…) Os primeiros textos interessantes de apologia à expansão ultramarina devem-se à escrita ou transmissão do rei Duarte I, que teve de tomar decisões quanto às iniciativas do Infante Henrique relativamente às explorações atlânticas e quanto ao prosseguimento das conquistas no Magrebe, e a Zurara, que subscreve as primeiras crónicas das conquistas e razias no Norte de África e do reconhecimento do Atlântico até à Guiné. E será precisamente, e mais tarde, na sua Crónica de D. Duarte, que Rui de Pina fará ressaltar sérias críticas à temeridade henriquina, e também algo eduardina, quanto à expedição a Tânger. No Leal Conselheiro proclama-se o dever de fazer guerra [aos Mouros] para tornar suas terras à obediência da Santa Madre Igreja e pôr em liberdade todos aqueles que à nossa fé quiserem vir, que livremente o possam fazer [...]; e adverte-se que, uma vez tomada uma decisão bélica pelo rei e seu Conselho, não convém mais escoldrinhar, mas, sem embargo, matar, ferir e roubar, segundo por seu rei e senhor for ordenador. Estas normas de Duarte I estão, no essencial, coonestadas por deliberação de um Consistório em resposta a uma questão levada junto do papa pelo conde de Ourém, embora Rui de Pina transcreva certas condições cautelares e morais dessa deliberação que de facto não foram observadas na expedição a Tânger. Este cronista, que aliás escreve acerca de um desastre militar já distante e anterior ao próprio nascimento, responsabiliza claramente o Infante Henrique por uma decisão precipitadamente agenciada nos bastidores da Corte, impopular e contrária aos pareceres, em conselho, do Infante Pedro, do conde de Barcelos e às ponderosas razões de siso (embora contrapesadas por outras de honra e de cavalaria) aí eloquentemente aduzidas pelo Infante João. Acerca do temerário entusiasmo do infante Henrique em matéria de guerra aos Mouros não restam quaisquer dúvidas: num seu conselho escrito que Duarte I registou no chamado Livro da Cartuxa, diz o infante Henrique que a honra inerente a essa guerra he a mayor honrra que ha neste mundo, e em respeito desta as outras sam qasy nom aujdas por honrras, aplicando a este respeito uma conhecida frase de Cristo: eu non vym meter paz mas cuytelo.
Zurara, ligado por duas comendas à Ordem de Cristo, persona grata de Afonso o Africano, cronista oficial dos primeiros grandes feitos de conquista em África e do início da expansão atlântica, apresenta o Infante Henrique de tal maneira que os grandes actos praticados em sua honra e serviço o são, também, inquestionavelmente, em serviço de Deus, e instrumentalmente em honra e proveito dos seus agentes directos. Já ao salientar o papel do Infante na conquista de Ceuta considera que tam maravilhosas vertudes não lhe parecem senam de algüu homem trazido a este mundo pera espelho de todolos vivos. O conhecido retrato da Crónica dos Feitos da Guiné, cuja redacção inicial, certamente retocada mais tarde, fora entregue ao rei ainda em vida do infante Henrique, é o de um cavaleiro ideal, corajoso, infatigável, extremamente devoto, virgem até à morte, dado à criação de bons servidores, empenhado em altos empreendimentos aparentemente inexequíveis e com uma fleumática vontade movida a algüa certa fim aos homeës noom conhecida. Graças à sua perseverança foram descobertos, principiados a povoar e a arrotear, os arquipélagos da Madeira e dos Açores, e chegara-se até ao rio senegal, então identificado como braço ocidental do Nilo e portanto tido como via de acesso ao reino de Preste João. Na viagem decisiva para o reconhecimento de tal rio, um mareante mais entusiasta chega a propor que a rota vá mesmo até ao Paraíso Terreal, que era então imprecisamente localizado a montante dos grandes rios da Índia asiática, como ainda Os Lusíadas indicam a dado passo.
Seja como for, e até à consolidação do Vice-Reino oriental sob uma autoridade régia, o Infante Henrique personificará uma expansão doutrinariamente concebida em termos cavaleirescos senhoriais, à qual ainda em sua vida é prestada homenagem na Bula Romanum Pontifex, de 1455, proclamada solenemente na Sé de Lisboa perante representantes de todas as comunidades estrangeiras, que assegura à Coroa portuguesa o senhorio de Ceuta e o exclusivo da conquista e comércio desde os cabos Bojador e não até ao Índico, designação ainda geograficamente imprecisa. No Esmeraldo..., Duarte Pacheco Pereira, que é caracteristicamente um cavaleiro-mercador atento aos valores económicos, mas a título de serviço de dilatação da fé, vê ainda o grande empreendimento henriquino como uma revelação que bem parece vir per novo mistério de Deus e nom per outro modo temporal e mantém a tese do rei Duarte I sobre o direito de reconquista do Magrebe arrebatado pelos Muçulmanos oito séculos antes, tese depois várias vezes invocada nomeadamente na Exortação da Guerra vicentina dedicada à expedição de Jaime de Bragança contra Azamor em 1513». In Óscar Lopes, A Busca de Sentido, Questões de Literatura Portuguesa, Editorial Caminho, Lisboa, 1994, ISBN 972-21-0986-3, Conferência proferida no Congresso Le Caravelle Portughesi sulle vie delle Indie, Milão, 1992.

Cortesia de Caminho/JDACT