sábado, 15 de março de 2014

Poesia. Alexandre Herculano. «… o amor da terra, da casa? O sentido da vida, a saudade que não é só o tempo a passar mas, sobretudo, a descoincidência das coisas com o que sonhávamos ver nelas. Um pesadelo, um sonho mau de que se acorda em trevas»

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Tristezas do desterro
Que férreo coração esquece a terra,
que lhe escutou os infantis vagidos,
e lhe bebeu as lágrimas primeiras,
prelúdio a tantas que no curto espaço
da vida há-de verter? Quem nunca esquece
o tecto paternal, embora adeje
ao redor dele o medo de tiranos?
Quem não deseja misturar, na morte,
com a gleba nativa o pó de extinto,
e murmurar seu último suspiro
ali, onde primeiro a luz diurna
o alumiou na rápida passagem
entre o nada e o morrer, chamada a vida?
Ai, que és tu, existência? Um pesadelo,
um sonho mau, de que se acorda em trevas,
na vala dos cadáveres, em meio
da única herança que pertence ao homem,
um sudário e o perpétuo esquecimento.
A infância é dormir plácido: inquieta
a mocidade é já; mas entre dores
vem o amar e esperar, e a crença ardente,
e afectos santos consolar quem dorme:
pouco a pouco porém, sobre a jazida
do sonhador, do mal se assenta o anjo,
e as imagens ridentes da ventura
co'as negras asas dispersando ao longe,
com duro pé o coração lhe oprime.
Oh no grabato mui bem cedo esse anjo
veio assentar-se, o juvenil enleio
de afectos puros em dormir sereno
ffugentou de mim. Vagueei nos mares;
peregrinei na terra: em toda a parte
o pé maldito me esmagou o peito,
e da pátria a saudade, em sonho triste,
imóvel, do viver me tece a noite.
Poema de Alexandre Herculano (1810-1877)

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