O Peregrino
«(…) Sim, responderam
das quatro portas da sala quatro homens, que, de espada na mão, guardavam as
entradas. Somos nós todos irmãos?... Há entre nós algum desconhecido, algum de
quem o sagrado nomeador não saiba o nome? Poderemos nós ter receio de sermos
traídos?... Um dos frades levantou-se e caminhou até meio da sala. A todos
conheço e afianço, disse ele, excepto ao desconhecido, que está sentado ao teu
lado. O velho ergueu a mão, como para dizer que sabia do que tratava, e
prosseguiu assim: Se entre nós há algum tímido ou medroso; se aqui alguém, que
não tenha a coragem de assistir aos terríveis mistérios da nossa ordem, esse
que jure guardar silêncio e que se retire. Mais tarde não lhe seria isso
permitido, e a covardia e a traição seriam punidas com a morte. Ninguém se
moveu. Todos os indivíduos ali reunidos eram homens de rija têmpera e de fé inquebrantável,
que já cem vezes tinham ouvido aquela advertência, sem que lhes estremecesse os
corações de bronze. Agora, que estamos aqui todos experimentados e invencíveis
na nossa fé, concluiu ele é tempo de descobrir os rostos e do nos vermos
abertamente. Senhores, está aberta a sessão dos Cavaleiros Templários!...
A assembleia dos templários
A um sinal do ancião os
capuzes e as túnicas desapareceram como por encanto. Viram-se então naquela
sala homens de várias idades, de fisionomias diversas, mas todos uniformemente
cobertos de reluzente aço. Vestiam todos a armadura completa dos cavaleiros da
Idade Média, tendo vestida uma túnica. Na couraça de cada um brilhava a cruz de
ouro, distintivo da ordem do Templo. Eram aqueles, com efeito, os restos da
poderosa associação, que fizera tremer a Europa, e que, na opinião do vulgo,
fora destruída havia dois séculos. O que era, porém, verdade era que, com
aquela força invencível, que provém do segredo e das riquezas, os Templários se
tinham perpetuado obscuramente através dos séculos, vencendo perigos inauditos,
conservando e guardando o segredo em meio dos tormentos, com os olhos sempre
postos num futuro, que, por muito distante, teria feito desanimar qualquer
outro, mas que não conseguia desanimar aqueles homens de ferro. Reunidos,
estavam sem máscara; conheciam-se todos e sabiam quais eram as qualidades e o
poder de cada um. Quase todos usavam na sociedade um nome aclamado e
respeitado; muitos deles, quer pelo talento, quer pela espada, ocupavam nas
cortes dos reis da Europa posições distintíssimas. E por isso as forças
daqueles trabalhadores da sombra iam-se estendendo cada vez mais, e os chefes
aguardavam com um frémito de esperança o momento em que a sua ordem, convertida
em soberana, poderia retomar à face da Europa e do mundo o lugar que lhe competia.
O nomeador, espécie de
secretário que tinha os registos, principiou a chamada: Barão de Beaumanoir!
Presente!... respondeu o ancião, que presidia à assembleia, erguendo-se. O nome
de Beaumanoir, ilustre entre todos na história dos Templários e na da França,
era altiva e nobremente usado pelo célebre guerreiro, cuja reputação era imensa
nos exércitos franceses. Percy de Sussex!... prosseguiu o nomeador. O conde
britânico levantou-se, e todos admiraram a sua estatura gigantesca e a altivez
da sua fisionomia leal. Pedro Calderon!... Francisco Burlamacchi!... Ulrico
Zuinglio!... Guarniero de Hatzing!... Todos respondiam à chamada, à medida que
iam sendo pronunciados os nomes. Aqueles representantes das diversas nações da
Europa apresentavam nas fisionomias a diferença que havia nas suas origens. Assim,
a barba farta e áspera de Calderon, o seu rosto anguloso e ossudo, contrastavam
com o rosto quase infantil e cheio de indizível doçura de Francisco
Burlamacchi; e Zuinglio, o reformador suíço, que mais tarde devia sucumbir na
batalha contra os católicos, homem de aspecto severo, pálido, de poucas
palavras estava em absoluta oposição com o barão de Hatzing, cujas face rosadas
e cabelos louros davam imediatamente a conhecer um saxão, ainda ao observador
menos perspicaz. Inácio de Loiola!... chamou, por último, o nomeador. Presente!
Respondeu com voz solene o peregrino, que fora o último a chegar.
Os seis chefes voltaram então o olhar para o lado daquele seu
companheiro, e parece que só então repararam que ele era o único que se
apresentava com as vestes andrajosas no meio daquela fúlgida reunião, em que
todos estavam com as suas brilhantes armaduras. Irmão, disse Beaumanoir, com
acento de afectuosa deferência, irmão, o teu disfarce, agora que estás connosco,
já de nada serve. Desde o dia em que nos deixaste, faz agora três anos, que nós
conservamos com reverente afecto a esplêndida armadura, que para ti foi cinzelada
pelo melhor artista de Toledo. Irmãos escudeiros, trazei a armadura, e vesti-a
ao senhor de Loiola. Dois dos irmãos levantaram-se e iam a encaminhar-se para
uma das portas da sala, quando Inácio os deteve com um gesto, dizendo: É
inútil. Estes andrajos, que trago vestidos, já não são indícios de pobreza; mas
um voto, que fiz, me obriga a trazê-los. Apesar disso, irmão Loiola… Apesar
disso, irmão Beaumanoir, os estatutos da nossa ordem conferem a qualquer irmão
o direito de se vincular por qualquer voto, contanto que este não seja
contrário ao fim supremo da associação. O tom em
que Loiola pronunciara aquelas palavras era tal que não se podia insistir, a
menos que não se quisesse entrar em questão com o estranho Templário; por isso,
Beaumanoir fez um sinal e o nomeador continuou a chamada. Debaixo daquelas
abóbodas ressoaram então os nomes mais ilustres da Europa, já pela nobreza de
sangue, já pelo alto valor nas artes, nas ciências, nas armas e no governo.
Estava ali um senado capaz de reger o mundo inteiro sem custo algum!... Um
senado do qual um dos chefes era Inácio de Loiola, o génio mais potente de
organização, que aparecera no mundo antes de Bonaparte!...» In
Ernesto Mezzabota, O Papa Negro, História da Europa Medieval e seus costumes,
tempo da narrativa; entre 1500 -70 d. C, 1848, Rio de Janeiro, 1947, corrigido
por Milton Barros Carvalho, Brasil,
2009.
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