O Maravilhoso no Ocidente Medieval
«(…) Os que até agora se pronunciaram sobre o maravilhoso parecem muitas
vezes influenciados pela obra, aliás muito interessante, de Tzvetan Todorov sobre
a literatura fantástica, e em particular pela distinção que ele estabelece
entre o estranho e o maravilhoso, em que o primeiro, o estranho, pode ser
identificado pela reflexão, ao passo que o maravilhoso conserva sempre um
resíduo sobrenatural que nunca conseguirá explicar-se senão recorrendo ao
sobrenatural. Estamos portanto no mundo do sobrenatural, mas parece-me que nos
séculos XII e XIII o sobrenatural ocidental se divide em três âmbitos que se
recobrem, mais ou menos, com três adjectivos: mirabilis, magicus,
miraculosus.
Mirabitis. É o nosso maravilhoso com as suas origens
pré-cristãs. Abarca o conjunto dos elementos. Magicus. É sabido que o
termo em si podia ser neutro para os homens do Ocidente medieval, porquanto
teoricamente se reconhecia a existência de uma magia negra que tinha a ver com
o diabo, mas também de uma magia branca que, em contrapartida, era considerada lícita.
De facto, o termo magicus, e o
campo por ele designado, rapidamente deslizou para o lado do mal, para o lado
de Satanás. Magicus é portanto
o sobrenatural maléfico, o sobrenatural satânico. O sobrenatural propriamente
cristão, aquilo a que justamente poderia chamar-se o maravilhoso cristão, é o
que procede do miraculosus; mas o milagre, o miraculum, parece-me ser apenas um elemento, e eu diria até
um elemento bastante restrito, do vasto âmbito do maravilhoso. Procurei, sem na
verdade descer a pormenores, indicar em que sentido o miraculosus não era mais
que uma parte do maravilhoso e até como ele tendia a fazê-lo desvanecer.
Em primeiro lugar porque uma das características do maravilhoso é o ser
produzido, certamente, por forças ou por seres sobrenaturais, que são, precisamente,
inumeráveis. E uma marca de tal facto pode ser encontrada, creio eu, no plural mirabilia
da Idade Média. A realidade é que não apenas temos um mundo de objectos, um
mundo de acções diversas, mas que por detrás deles há uma multiplicidade de
forças. Ora, no maravilhoso cristão e no milagre há um autor, e um só, que é
Deus, e é aqui exactamente que se põe o problema do lugar do maravilhoso não
apenas numa religião, mas numa religião monoteísta. Temos depois uma
regulamentação do maravilhoso no milagre. Temos simultaneamente um controlo e
uma crítica do milagre que, no limite, faz desvanecer o maravilhoso, e por fim
temos aquilo a que eu chamo uma tendência para racionalizar o maravilhoso e em
particular para despojá-lo mais ou menos de um carácter que me parece
essencial, a imprevisibilidade.
Se referirmos etimologicamente o maravilhoso a raízes visivas, descobriremos
nele, como traço fundamental, a noção de aparição. Ora, o milagre, se depende
apenas do arbítrio de Deus, que é exactamente o que o diferencia dos
acontecimentos naturais, também estes, como é óbvio, queridos por Deus, mas por
Ele decididos uma vez por todas, tendo-se assim estabelecido uma certa
regularidade no mundo, não escapa por sua vez ao plano divino e a uma qualquer
regularidade. E se o milagre se realiza através daqueles intermediários que são
os santos, é preciso dizer que a situação em que estes vão encontrar-se é tal
que o verificar-se do milagre por sua intercessão é previsível. Apesar dos
jogos das variantes e dos artifícios da literatura hagiográfica, parece-me
poder captar nos homens da Idade Média inclusive um certo sentido de cansaço em relação aos santos, já que a
partir do momento em que um santo entra em cena já se sabe o que ele vai fazer.
Uma vez que se encontre numa determinada situação, sabe-se desde logo que
procederá a uma multiplicação dos pães; que operará uma ressurreição, que
expulsará um demónio. Dada a situação, já se sabe o que irá acontecer. Temos
assim todo um processo de esvaziamento do maravilhoso. E eu acrescentaria que,
no que se refere ao cristianismo, alguma dificuldade em aceitar o maravilhoso
parece-me provir do facto de que, olhando bem, na Bíblia não lhe é dado um
grande espaço». In Jacques le Goff, Il meraviglioso e il quotidiano nell’occidente
medievale, Gius, Laterza, 1983, Roma, O maravilhoso e o quotidiano no ocidente
medieval, Edições 70, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-44-1563-5.
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