Os Propagandistas do Estigma
Os Flagelantes do Mundo Ocidental
«(…) Em 1947, Maurice
Merleau-Ponty, que ainda nutria uma certa simpatia pelas ideias comunistas,
quis compreender a lógica dos processos de Moscovo que, dez anos antes, tinham
permitido a Estaline eliminar os seus antigos companheiros tidos então como
inimigos do povo. Apesar de estarem inocentes das responsabilidades que lhes
eram imputadas, os bolcheviques da linha dura confessam os seus erros e
reconhecem culpas imaginárias. Reconhecem toda a espécie de traições contra o
proletariado e morrem confiantes no futuro da Revolução. A mentalidade de
inculpação subsiste em nós, com as devidas diferenças, e reflecte-se na forma
como espontaneamente nos recriminamos pelas desgraças do planeta. O europeu
médio, homem ou mulher, é um ser de uma sensibilidade extrema, sempre
predisposto a sentir-se culpado pela pobreza em África e na Ásia, a compadecer-se
com as desgraças do mundo, a responsabilizar-se por elas, a questionar-se eternamente
sobre o que pode fazer pelo Sul, em vez de se interrogar sobre o que pode o Sul
fazer por si próprio. Desde a tarde do dia 11de Setembro de 2001, grande parte dos nossos
concidadãos, não obstante a simpatia evidente pelas vítimas, pensou para consigo
que os americanos estavam mesmo a pedi-las. A fina flor da inteligência
europeia empenhou-se imediatamente nesta via com uma profusão de subtilezas
retóricas: os piratas do ar que destruíram as torres do World Trade Center eram
agentes de um impiedoso castigo. Foi então que se multiplicaram os Neros de
pacotilha que aplaudiram o duplo atentado, entrevendo nesse acto a concretização
de uma justiça imanente.
Foi uma justa represália e o restabelecimento de um equilíbrio quebrado
por uma dissimetria excessiva. Eis a interpretação de Jean Baudrillard numa
religiosíssima justificação da vingança:
Quando a situação é monopolizada
desta forma pelo poder mundial, quando nos habituámos à tremenda condensação de
todas as funções pela máquina tecnocrática e pelo pensamento monolítico, que
outra via existe para além de uma alteração radical da situação? O próprio
sistema criou as condições objectivas desta retaliação brutal. Uma vez que tem
todos os trunfos, o sistema força o Outro a mudar as regras do jogo
(...). Só um terror combate outro. Um terror que não esconde uma ideologia.
Porém, os atentados do 11 de Março de 2004, em Madrid (200 mortos) , provaram que os Europeus tinham
também interiorizado a culpa: a decisão do novo governo de esquerda de Zapatero
(que há muito se empenhava nesta causa) de retirar as tropas espanholas do
Iraque fez crer que se vergava às exigências dos bombistas e que o apoio de
Madrid a Washington na segunda guerra do Golfo era a cause do morticínio na
estação de Atocha (enquanto células terroristas continuaram a fomentar ataques
muito depois da retirada, alegando como motivo a ocupação da Andaluzia muçulmana
depois do século XV). Recordemos que um milhão de pessoas se manifestou em
Madrid e não se ouviu um grito de ódio contra os Árabes. Contentaram-se em
vaiar José Aznar que os envolvera de mau grado na guerra do Iraque e acusara injustamente
a ETA, a organização separatista basca. O massacre é ainda hoje atribuído ao líder
da direita popular, elevado comodamente à categoria de bode expiatório, o que
impede que nos interroguemos sobre as causas reais. As bombas que explodiram em
Londres no dia 7 de Julho de 2005 e
vitimaram cerca de 60 pessoas deram também lugar a toda uma retórica de expiação.
No dia seguinte, lia-se na manchete do jornal Le Parisien, um órgão que não é especialmente reputado pelo seu
esquerdismo: Al-Qaeda pune Londres,
(o jornal desculpar-se-ia em seguida por esta frase). Ken Livingston,
presidente da câmara de Londres e convicto homem de esquerda, conhecido pela
sua eterna hostilidade a Israel, condenou os atentados mas referiu pouco depois
que era urgente deixar em paz os países
árabes, esquecendo talvez que os terroristas eram na sua maioria
cidadãos britânicos de origem paquistanesa:
Os atentados suicidas não teriam
provavelmente acontecido se o Ocidente tivesse deixado os países árabes tomarem
livremente os suas decisões após a Primeira Guerra Mundial. Creio que a intervenção
ocidental em países maioritariamente árabes que se estendeu por duas décadas ficou
a dever-se à necessidade de petróleo por parte do Ocidente (...). Se, no fim da
Primeira Guerra Mundial, tivéssemos feito o que havíamos prometido aos árabes,
ou seja, permitido que tivessem os seus próprios governos, e tivéssemos permanecido
à margem dos seus assuntos, comprando apenas o seu petróleo (...), penso que esta
desgraça não teria ocorrido.
In Pascal Bruckner, La Tyrannie de la Pénitence, Essai sur le Masochisme
Occidental, Editions Grasset Fasquelle, 2006, O Complexo de Culpa do Ocidente.
Publicações Europa-América, 2008, ISBN 978-972-1-05943-6.
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