Paris, princípios de Agosto de 1977
«Ouço a minha voz, para assim me certificar que sou, no que fui e no que,
gostaria de acreditar, serei ainda. Ouço a minha voz, adentro destas portas,
destas paredes que ora se estreitam e me sufocam, ora se alargam e me deixam tonta,
ouço a minha voz e fico muito quieta, ouço a minha voz, uma vez e outra, para
me certificar que de mim se trata, sei que estou dentro dela, que através de
mim tomou corpo e forma, e alma, que, estonteante, tomou conta das arenas, das
praças, e das salas dos teatros de ópera, ouço a minha voz porque ela é a única
coisa que me resta, e é palpável e concreta, eu que vivi paredes meias com a invisibilidade
e a transparência, debatendo-me com a falta de razões e de pontos de
referência, quedando-me, aguada, num limbo de culpa e de inocência, do qual a
minha voz me permitiu a saída, aos tropeções e com muita pressa, mas nem sempre
completa. E eu estou aqui fechada nesta casa encerrada em recordações que me
não libertam. Sento-me num cadeirão Luís XV, o piano, muito quieto, adquire
tonalidades cinza que lhe protegem os sons e as teclas, a minha voz passeia-se incólume
pelas minhas artérias porque me lembro dela, embora fique depois presa em nós
tecidos pela mágoa na garganta, e quando a quero fazer sair de mim sai entrecortada,
os portentosos legatos partem-se-me por vezes a meio ou antes do fim da frase
mas tenho que reconhecer que hoje me escapam, os agudos quebram-se de encontro
ao diafragma, que estilhaça, os graves perdem-se-me na garganta porque por
vezes não encontram a ressonância, a extensão da minha voz encolheu sem qualquer
razão nem lógica, meu deus, a verdade é que a minha voz hoje me escapa, foi
minha mas fiquei dela amputada sem saber como nem quase me dar conta, a minha
voz fazia parte integrante de mim, e tinha um timbre e uma cor e nuances
palpáveis, e cobria com facilidade três oitavas, e estendia-se pelas pautas
sempre de uma maneira renovada, era um desafio permanente e que me fazia falta,
as notas estavam ali, perante mim, e eu levava a minha voz a percorrer cada uma
de maneira inusitada, cada nota tinha uma modulação própria, cada nota era um
mundo de cambiantes que eu trabalhava a meu bel-prazer deixando que a música
encontrasse eco nas minhas vísceras, e eu tinha-as diante de mim e
maravilhava-me de cada vez com a descoberta da inflexão certa, era como se cada
nota fizesse despoletar em mim, e por instinto, uma resposta, depois havia o
desafio de a lançar na tessitura adequada e com o volume apropriado ao
sentimento que transporta, e ver a minha voz respondendo ao desafio
desdobrando-se em cascata, e multiplicando as cores e o brilho e a luminosidade
que comporta. A minha voz era eu porque ao sair de mim transportava-me consigo
fazendo com que eu me mantivesse em contacto com o mundo à minha volta, era
como se eu saísse de mim materializando assim a minha alma, que adquiria
contornos e espessura, e uma plasticidade outra e concreta.
Eu era a minha voz e hoje sinto que não sou nada. Eu era a minha voz e,
ao perdê-la, perdi-me também a mim própria, fiquei esvaziada e deserta, e tudo
dentro de mim se estiola e degrada, tudo dentro de mim se amordaça e me deixa
calada, os olhos fecham-se-me, as órbitas dilatam-se, os poros da pele secam, e
o meu corpo torna-se um invólucro que já não presta, porque já não serve para
nada. Sinto as pálpebras pesadas, os fantasmas andam à solta pela casa, os
duendes há muito que saíram por aquela porta, as gazelas deixaram o jardim e já
não descem pelas escadas, as flores já não invadem as salas, as pessoas já não
atravessam os salões, o burburinho dos talheres à mesa dissipou-se como uma
borrasca, há um fluxo do tempo que deixa um espaço aberto às coisas que
entretanto nascem, mas eu não sei se farei parte delas, nem por quanto tempo
ainda ficarei viva na memória das pessoas que me escutam, e das que depois de
mim permaneçam. Esta casa está silenciosa, a avenida em que habito é tranquila
e, com as janelas fechadas, não entra nestas salas, sinto-me apartada do mundo
como se não tivesse nele um lugar nem fosse nele esperada, para além da minha
voz sinto que não sou nada, e a minha voz faz parte de um passado que me
espreita e guarda, mas que também me mata e traz acorrentada.
Olho para o piano, levanto-lhe a tampa percorro-lhe com os dedos as
teclas e sinto-me inspirada, a minha voz alegra-se e sai de mim vibrante e
depurada e logo fico a pensar que a terei de volta sempre que quiser e a
qualquer hora, mas depois falhará relembrando-me que me escapa, e a essa ideia,
meu deus, os olhos enchem-se-me de lágrimas, o coração aperta-se-me
estrangulando-me a garganta, dando então uma desculpa para a voz que em vão
espera e espreita». In Rita Cerdeiros, Maria Callas, De Lúcia a Violeta, Editora
Pergaminho, Lisboa, 1998, ISBN 972-711-139-4.
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